A propósito da estreia nos cinemas nacionais esta quinta-feira, de Sin City 2: A Mulher Fatal, pareceu-me interessante recuperar aqui o texto que escrevi em 2005, para o nº 3 do BD Jornal, a convite do Machado-Dias.
Tenciono, naturalmente, falar também aqui do novo filme, que além do mais, é baseado numa das minhas histórias preferidas de Sin City, que tive o prazer de traduzir para português, mas só o deverei conseguir fazer durante a próxima semana, pois é pouco provável que consiga ir ver o filme antes disso. Até lá, deixo-vos com este texto sobre a série de Frank Miller e a sua passagem ao cinema
SIN CITY: QUANDO O CINEMA SE TRANSFORMA EM BD
Depois do sucesso comercial no mercado americano e da passagem pelo Festival de Cinema de Cannes, chegou finalmente a Portugal no dia 9 de Junho aquele que a revista Première anuncia como o filme de culto do ano, Sin City, uma transposição para cinema, dirigida por Frank Miller e Robert Rodriguez, da série de culto de Frank Miller. O pretexto ideal para falarmos um pouco do filme, começando pelos livros disponíveis em Portugal que lhe deram origem.
BEM-VINDO A SIN CITY
Série revolucionária, pela forma como recupera um género considerado acabado (o policial negro) e o reinventa em violentas histórias de crime e castigo, desenhadas num espectacular preto e branco, altamente contrastado, Sin City tem conciliado o estatuto de obra de culto com um grande sucesso comercial, como de resto aconteceu em Portugal, onde as excelente vendas do primeiro volume se aliaram ao reconhecimento da crítica, traduzido no prémio de Melhor Clássico da BD editado em 2003, atribuído pelo Festival de Banda Desenhada da Amadora.
Estreada no nº 51 da revista Dark Horse Presents, Sin City assinalava um estrondoso e inesperado regresso de Frank Miller à prancheta de desenhador, que pôs fim a um hiato de dois anos (desde Elektra Lives Again), em que o criador de Elektra se dedicou a uma decepcionante experiência em Hollywood, onde colaborou nos argumentos dos filmes Robocop II e III. Assegurando todo o processo criativo, desde o argumento e desenhos até à legendagem (ao contrário do que acontecia em Hollywood, onde era apenas mais uma peça da engrenagem), Miller criou com Sin City uma série policial extremamente violenta e inovadora no uso contrastante do preto e branco e na diluição do conceito de herói tradicional, que aqui cede o protagonismo à própria cidade, contribuindo para um novo fôlego dos comics policiais, há muito esquecidos num mercado atulhado de super-heróis.
Para os leitores menos atentos à trajectória de Miller, esta estilizada incursão pelos campos do romance "hard boiled" poderia parecer uma ruptura na carreira do autor, conhecido principalmente graças à revitalização de super-heróis como o Batman ou o Demolidor. Uma ruptura apenas aparente, pois Sin City acaba antes por ser mais uma fase lógica na evolução estética e literária de um criador, que já mostrou o seu talento para incorporar os seus diferentes interesses e fontes de inspiração em obras originais e coerentes. Liberto dos constrangimentos editoriais existente nas grandes empresas, como a DC e a Marvel, em que lida com personagens com um passado bem conhecido e que irão continuar a existir muito para além da sua intervenção, Miller soube aproveitar essa merecida liberdade para criar um universo de raiz, onde é rei e senhor.
As histórias policiais são um tema recorrente ao longo da obra de Frank Miller, que sempre teve vontade de fazer esse tipo de histórias, tendo-se dedicado aos super-heróis por ter sido o único tipo de trabalho que lhe apareceu no início de carreira. Mas as suas histórias de super-heróis revelam esse gosto pela literatura e cinema policial, em que personagens profundamente humanos, nas suas qualidades e defeitos, procuram sobreviver na grande cidade, submergida pela corrupção e pelo crime.
Estilização talvez seja o adjectivo que melhor defina o seu trabalho em Sin City, pois, sem nunca pretender fazer uma história realista, Miller procurou através de uma enorme economia de meios que tudo parecesse o mais atraente possível. Nas suas palavras: “queria que os carros fossem vintage, as mulheres fossem belas e as gabardines compridas. Se olharmos para um comic desenhado por Johnny Craig ou Wallace Wood [dois desenhadores da E. C. Comics] vemos que eles conseguiam dar "glamour" a todo e qualquer assunto. Eu quero que Sin City seja agradável de desenhar e consequentemente, agradável de ver, até porque eu sabia que estava a lidar com um material extremamente duro”.
Não era apenas em termos estéticos que Sin City foi inovador, pois não é nada habitual ver morrer o protagonista no fim da história, como acontece com Marv, (interpretado no cinema por Mickey Rourke, num espectacular desempenho que pode muito bem relançar a sua carreira, como aconteceu com John Travolta no filme Pulp Fiction). Um destino que serve para Miller mostrar de forma clara aos leitores que o verdadeiro protagonista da série é a cidade, de que Marv é apenas um habitante. Nas suas próprias palavras: “queria começar Sin City de forma que os leitores percebessem quão longe eu estava disposto a ir com os personagens. Não queria que fosse considerada como uma série centrada num único personagem. Assim evita-se a saturação. As pessoas realmente não vivem de uma aventura para a outra. Eu chego e visito esses personagens durante os períodos mais intensos da sua existência”.
A primeira história de Sin City, notável no seu experimentalismo gráfico, dificilmente ultrapassável, revelava no entanto alguns problemas narrativos, naturais numa história que se ia desenvolvendo de acordo com o prazer cada vez maior que Miller tinha em desenhá-la. Assim, apesar de algumas debilidades do argumento, em que a violência sádica está ao nível dos romances de Mickey Spillane e James Ellroy, o fabuloso sentido de planificação e a qualidade e eficácia da escrita emotiva e visceral de Miller, em que nada é supérfluo, fazem com que o resultado final seja uma excelente obra de BD.
Animado pelo sucesso de Sin City, Miller decide voltar às ruas da sua cidade, para nos apresentar Dwight, o protagonista de Mulher Fatal, o segundo volume da série, cuja história, já foi anunciado por Rodriguez, irá servir de base ao 2º filme, ainda sem data de estreia prevista. O experimentalismo do primeiro Sin City dá agora lugar ao rigor e classicismo desta nova entrega, em que a história (previsível, mas cheia de acção) de uma mulher fatal e do homem que se deixa dominar por ela, é contada de forma perfeita, respeitando todos os cânones do "cinema negro" que lhe deu origem.
Ava, a tal Mulher Fatal é claramente inspirada nas mulheres fatais do cinema. No entanto, esta personagem, ao contrário do que costuma suceder no cinema, não se apresenta tanto como uma vitima das circunstâncias, alguém a quem a vida arrastou para o crime, mas como uma pessoa extremamente calculista, que aparece aos outros personagens como uma encarnação do Mal em estado puro, muito mais aterrorizante para o leitor, que se apercebe da frieza e calculismo da personagem.
Também Dwight vai ter direito ao habitual tratamento de choque que Miller costuma dispensar aos seus heróis. O autor, que acredita piamente naquela máxima de Nietzsche, que diz que "o que não nos mata torna-nos mais fortes", vai fazer com que Dwight seja espancado e baleado, ficando entre a vida e a morte, para renascer como um novo homem, que aprendeu com a experiência traumática a que foi submetido. Um processo de expiação pelo sofrimento, enraizado na mitologia judaico-cristã, habitual na obra de Miller e pelo qual também já passaram Batman e o Demolidor.
Nesta segunda entrega ressalta o rigor de construção da violenta história, bem patente na forma hábil como Miller articula este episódio com o anterior, através da presença de Marv, que aqui tem um papel mais episódico, embora igualmente importante.
Depois de Mulher Fatal, Dwight, que no filme é interpretado pelo inglês Clive Owen, volta como protagonista de A Grande Matança, uma história ultra-violenta, contada quase em tempo real e onde o sangue corre ainda com maior abundância para as sarjetas de Sin City. Apesar de um argumento demasiado primário, merece destaque a forma como Miller gere o suspense, e que tem o seu ponto mais alto na cena em que se descobre que Jackie Boy (uma personagem a que Benicio Del Toro dá vida no filme) era polícia, e que a sua morte punha em causa o pacto tácito de não agressão com a polícia, de que dependia o estatuto especial da Cidade Velha.
Aquele Sacana Amarelo, o 4º volume da série é quando a mim o mais conseguido e o primeiro em que Miller quebra o habitual preto e branco, com a introdução de uma terceira cor, neste caso o amarelo, com resultados espectaculares, pois, como ele próprio comenta, “a cor é extremamente poderosa e o olhar é imediatamente atraído para ela, especialmente se se trata de uma cor isolada”.
Introduzindo um novo herói, John Hartigan, um polícia à beira da reforma que paga caro o preço de não pactuar com o sistema, esta história destaca-se pela intensidade e carisma das personagens principais e pelo rigor da construção e gestão do suspense, que atingem aqui talvez o seu ponto máximo. Se Nancy revela ser bastante mais do que uma simples bailarina de corpo deslumbrante (a que a actriz Jessica Alba faz justiça no filme), capaz de proporcionar a Miller algumas notáveis cenas de puro voyeurismo, Hartigan, o mais puro e honesto personagem até agora avistado em Sin City, é também uma das mais bem conseguidas personagens de toda a série, a que Bruce Willis dá corpo no cinema com grande eficácia e que, tal como Marv, morre no fim da história em que aparece pela primeira vez, deixando muitas saudades.
Considerado pelo próprio Miller como o seu trabalho favorito, apesar do aspecto algo ridículo (mas que se destaca bem do preto e branco da página e que o filme recria de forma impressionante) do filho do Senador Roark, com o seu sangue amarelo que vai enchendo as páginas à medida que a história se aproxima do fim, Aquele Sacana Amarelo é bem revelador da capacidade de Miller surpreender o leitor, que estava longe de imaginar que a pequena Nancy Callahan e a sensual bailarina do Kadie's são a mesma pessoa.
DA BD PARA O CINEMA
Sendo uma série claramente devedora da estética do film noir, o sucesso das histórias de Frank Miller ambientadas na cidade do pecado, atraiu naturalmente o interesse dos grandes estúdios cinematográficos, mas Miller, que trabalhou em Hollywood como argumentista e sabe bem como funcionam os estúdios de cinema, sempre se mostrou muito reticente a permitir que as suas personagens chegassem ao grande ecrã.
Foi preciso toda a persistência de Robert Rodriguez que, depois de mostrar a Miller uma série de imagens que provavam que era possível recriar no cinema, o preto e branco de alto contrate de Sin City, convidou o desenhador para assistir a um teste de filmagem da história curta O Cliente tem sempre Razão, para que ele pudesse ver por si próprio como, graças às novas tecnologias digitais, era possível recriar no ecrã até ao mais ínfimo pormenor, o grafismo único de Sin City. O tal teste, filmado com os actores Josh Hartnett e Marley Shelton, ainda antes de haver um contrato assinado, serviu para convencer definitivamente Frank Miller, para além de se revelar um óptimo cartão de visita para recrutar um naipe assombroso de actores que, além de Mickey Rourke, inclui ainda Bruce Willis, Clive Owen, Michael Madsen, Benicio del Toro, Jaime King, Rosário Dawson, Elijah Wood, Carla Gugino, Jessica Alba, Michael Clarke Duncan, Britanny Murphy e Rutger Hauer.
Para além de O Cliente Tem Sempre Razão, história publicada em Portugal no nº 1 da revista Comix, e que funciona como cena de abertura do filme, a longa-metragem adapta mais três histórias, todas já disponíveis em português pela Devir. São elas, A Cidade do Pecado, o primeiro volume de Sin City, rebaptizado como O Difícil Adeus na nova edição americana, O Grande Massacre e Aquele Sacana Amarelo.
Mais uma transposição do que propriamente uma adaptação, o filme é de uma fidelidade assombrosa à BD que lhe deu origem. Além de haver um respeito absoluto pelos enquadramentos, planificação e diálogos da BD, com as páginas a servirem de story-board, o próprio Frank Miller surge creditado como corealizador, a par de Rodriguez, que teve de abandonar a Director’s Guild of America, para poder conceder a Miller a realização conjunta e ainda convidar Quentin Tarantino para dirigir uma sequência de O Grande Massacre, recebendo um dólar de pagamento, em retribuição de Rodriguez ter feito música para o filme Kill Bill cobrando o mesmo valor. E, embora a cena filmada por Tarantino (uma surreal conversa dentro de um carro entre Dwight e o cadáver de Jackie Boy) não se distinga particularmente do resto do filme, Rodriguez ficou tão satisfeito com o resultado que lhe prometeu dobrar o salário no segundo Sin City...
Verdadeiro prodígio técnico, Sin City, o filme, visualmente espectacular, foi inteiramente rodado em suporte digital, única maneira de recriar o jogo de claro/escuro e a iluminação impossível de Miller, no estúdio de Rodriguez, no Texas, com os actores filmados contra um ecrã verde, que permitia que os cenários, o tratamento da imagem e a montagem das cenas fossem efectuados na pós-produção, única forma de fazer um filme com um elenco destes por apenas 40 milhões de dólares. E, embora isso depois não se note no ecrã, muitos dos actores que contracenam no filme, nem sequer se cruzaram nas filmagens, como foi o caso de Mickey Rourke, com Elijah Wood e Rutger Hauer, actores contratados muito depois de Rourke ter acabado de filmar as suas cenas.
Embora o filme apresente alguns problemas de ritmo e algumas das cenas precisassem de mais tempo, para os fãs da BD é uma experiência absolutamente fabulosa ver os desenhos de Miller ganharem vida no grande ecrã. Para o grande público, que não se deixe impressionar pela grande violência do filme, que faz Kill Bill parecer quase um filme da Disney, será certamente uma experiência diferente e inovadora, que se adora ou se odeia, mas dificilmente se esquece.
Texto publicado originalmente no BD Jornal nº 3, de Julho de 2005
Sem comentários:
Enviar um comentário