quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Evocando Sergio Toppi


Se o ano de 2012 foi infelizmente fértil no desaparecimento de grandes nomes da Banda Desenhada mundial, como Jean Moebius Giraud, ou Joe Kubert, cujas mortes tiveram grande destaque mediático, já o falecimento do Mestre italiano Sérgio Toppi, em 21 de Agosto, perto de completar 80 anos, passou relativamente despercebido, pelo menos em Portugal.
Uma lacuna que tentaremos corrigir nesta Bang!, evocando aqui a vida e a obra de Sérgio Toppi, virtuoso desenhador italiano, cujo estilo único e arrojada planificação não deixa ninguém indiferente. Nascido em Milão em 1932, Toppi matriculou-se na Faculdade de Medicina em 1952, para rapidamente descobrir que essa não era de todo a sua vocação. Rapidamente abandonou os estudos para se dedicar à ilustração, campo em que se estreia em 1953, realizando uma série de ilustrações históricas para a reedição da L’Enciclopedia dei Ragazzi, promovida pela editora Mondadori. Enquanto realiza trabalhos para publicações como a revista Topolino, em 1957 arranja emprego no Estúdio de Animação Pagot, dirigido pelos irmãos Pagotto, responsáveis pela primeira longa-metragem italiana de animação, o que não o impede de continuar a trabalhar como ilustrador para a imprensa e para a publicidade e de se estrear na Banda Desenhada em 1960, ilustrando uma biografia em BD de Pietro Micca, uma personagem histórica italiana do século XVII, escrita por Milo Milani para o jornal Corriere dei Piccoli.

Um momento importante da sua carreira na BD, foi o encontro com Sergio Bonelli, personagem incontornável da BD italiana, editor de Tex e Dylan Dog, que contratou Toppi em 1974, para este acabar de desenhar um Western que a morte de Rino Albertarelli deixara incompleta. O ano de 1975, também foi importante para Toppi, pois além de ter ganho o Yellow Kid para o melhor desenhador no Festival de Lucca, começou a colaborar com a revista Sgt. Kirk nesse mesmo ano. Seguir-se-ia a participação na mítica coleção Un Uomo, un’Avventura, onde Bonelli conseguiu a proeza de juntar os mais prestigiados nomes dos fumetti italianos, de Hugo Pratt a Milo Manara, passando por Crepax, Buzzelli, Battaglia, e claro, Toppi, que entre 1976 e 1978 ilustrou os volumes, L’Uomo del Nilo, L’Uomo del Messico e L’Uomo del Paludi, o primeiro dos quais chegaria a Portugal através de uma edição brasileira.
E se os interesses de Toppi estavam algo afastados das grandes séries da Bonelli, a sua amizade com o editor fez com que colaborasse ocasionalmente com a editora da Via Buonarrotti, desenhando histórias para a Ken Parker Magazine, para dois números de Nick Rayder, em 1997 e 2001, para o nº 11 da revista Julia, ilustrando uma história de Giancarlo Berardi, que chegou a Portugal, através da edição brasileira da Mythos, que publicou a referida história no nº 11 da revista J. Kendall Aventuras de uma Criminóloga.
Toppi tem também o seu nome ligado a outros dois populares personagens da Bonelli, Martin Mystére, de quem ilustrou uma história de 22 páginas para o Almanaque Martin Mystére nº 16, de 1999, posteriormente adaptada a um CD-Rom, e Dylan Dog, que Toppi retratou na capa do Dylan Dog Color Fest nº 3, de 2009, no que seria a sua última colaboração com a editora Bonelli.

Entre a longa colaboração com Il Giornalino, iniciada em 1976, e diversas participações nas principais revistas italianas, como a Sgt. Kirk, Linus, Alter Alter e Corto Maltese, Toppi constrói o seu estilo próprio, em que a rígida divisão da página em tiras e quadrados, dá lugar a uma planificação mais dinâmica e artística, que considera a página como um todo. O aspecto pétreo do seu desenho, em que as personagens parecem cristalizadas numa natureza ameaçadora, também ela fossilizada, o fantástico que emerge das suas histórias, faz da obra de Toppi, algo único e inesquecível.
Infelizmente, essa obra, tão variada que inclui, além de largas dezenas de histórias curtas, coisas tão inesperadas como uma biografia em BD do Papa João Paulo II, nunca conseguiu cativar devidamente o grande público, talvez pela ausência de um herói icónico que o fidelizasse. A obra de Toppi é constituída maioritariamente por histórias curtas, tendo como único personagem recorrente Il Coleccionista, um peculiar colecionador e aventureiro, misto de dandy e de cowboy, que se estreou em 1982 na revista Orient Express. Um personagem de moral dúbia e passado misterioso, muito longe dos heróis tradicionais com que o leitor facilmente se identifica.

Com o declínio das revistas em Itália, que se acentuou no início do século XXI, Toppi começou a cair no esquecimento no seu país. Algo que não aconteceu em França, graças ao excelente trabalho da editora Mosquito, que a partir de 1997 tem vindo a editar de forma cuidada o seu trabalho (tal como o de outros grandes mestres italianos, como Battaglia e Micchelluzi). Uma parceria feliz, que deu origem a mais de 30 álbuns de BD, entre colectâneas de histórias curtas, até trabalhos feitos directamente para o mercado francês, como a segunda parte de Sharaz’de, ou a quinta aventura do Coleccionador.
Graças às edições da Mosquito, o trabalho de Toppi tem vindo a ser traduzido em diversos países, da Europa, aos Estados Unidos e à China, onde uma exposição das suas obras foi vista por dois milhões de pessoas em apenas cinco dias. Uma merecida consagração que Toppi, já debilitado pelo cancro que haveria de o levar, não pode testemunhar pessoalmente.
Apesar do seu trabalho só agora começar a ser publicado nos EUA, graças à Archaia Press, a sua influência em desenhadores como Walt Simonson, Frank Miller, Bill Sienkiewicz, Ashley Wood, ou Dave McKean (sobretudo numa primeira fase que vai até ao Arkham Asylum) é evidente e assumida pelos próprios, que nunca esconderam a sua admiração pelo trabalho de Toppi.
Walt Simonson, que deu Toppi a descobrir a Frank Miller e Howard Chaykin, quando os três partilhavam um estúdio em Nova Iorque, foi o autor do prefácio à edição americana de Sharaz-De, em que refere que: “as imagens de Toppi são uma mescla evocativa de belos desenhos, texturas, formas, espaço negativo e design. Desenha com uma mistura de contornos, hachuras, manchas de preto cuidadosamente posicionadas e espaços em branco. Ele é um mestre dos espaços em branco. O resultado é um desenho extremamente vivo em cada página, independentemente do assunto”. Já Frank Miller, que dizia que “Toppi faz o impossível parecer fácil”, foi o responsável pela estreia do desenhador italiano no mercado americana, publicando uma ilustração que o Mestre fez de homenagem à série Sin City, no nº 4 da mini-série Sin City: The Big Fat Kill, infelizmente ausente da edição portuguesa da Devir. Mais tarde, será a Marvel a encomendar-lhe as capas da mini-série 1602: The New World, que retoma o conceito, criado por Neil Gaiman, do universo Marvel transposto para o século XVII, ficando-se por aqui a presença do desenhador americano na terra do Tio Sam, até a Archaia começar finalmente a publicar a sua obra em inglês, começando por Sharaz’de, numa bela edição que Toppi já não teve tempo de ver…

Em Portugal, onde a influência do seu traço é visível num autor como Pedro Massano, especialmente no álbum Mataram-no Duas Vezes,  as histórias de Toppi chegaram através de revistas como Jacto e o Jornal do Cuto, que publicaram algumas histórias curtas e da Coleção A Descoberta do Mundo, da Larrousse, que a Dom Quixote editou em Portugal e em que o nome de Toppi aparece ao lado de ilustres compatriotas seus, como Buzzelli, Manara, ou Battaglia, e do português Eduardo Teixeira Coelho. A última aparição de Toppi em português, deu-se em 1999, no nº 8 da 2ª série da revista Selecções BD, com a história Algarve 1460, protagonizada pelo Infante Dom Henrique, enquadrada por um belo texto de João P. Boléo, que abordava a relação de Toppi com Portugal, que tinha visitado um ano antes de desenhar essa história. Curiosamente, a mesma revista preparava-se para iniciar a publicação de Sharaz’de, a peculiar adaptação das Mil e Uma Noites, que é um dos melhores trabalhos de Toppi, no preciso momento em que falência da editora Meribérica levou ao seu desaparecimento.
Ficaram a perder os leitores portugueses. Os mesmos leitores que, nestas páginas têm finalmente direito a uma pequena amostra do imenso talento de Sergio Toppi, um desenhador, nas palavras de Dave McKean, “capaz de desenhar qualquer coisa e dar-lhe uma solidez e um sentido de movimento que a tornam ideal para contar histórias no formato da Banda Desenhada”.
Texto originalmente publicado no nº 14 da revista Bang! de Abril de 2013

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