segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Poesia Desenhada - Os Labirintos da Água, de Diniz Conefrey


Dez anos depois da publicação de Cochquixtia: O DespertarDiniz Conefrey regressa finalmente às livrarias com Os Labirintos da Água, livro que transpõe para a Banda Desenhada três textos de Herberto Helder. Um dos nossos melhores ilustradores e também um dos raros a reflectir sobre a própria linguagem e os seus autores (vejam-se os textos que publica ocasionalmente no seu blogue Quarto de Jade), Conefrey tem tido visíveis dificuldades em fazer chegar o seu trabalho ao público-leitor, evidente na incapacidade em encontrar editor para os restantes capítulos da ambiciosa trilogia sobre o México pré-colombiano, de que O Despertar, que a Devir publicou em 2003 em Portugal e Espanha, foi o capítulo inicial, e único publicado.
Mas não é a arte pré-colombiana, de que Conefrey é um profundo conhecedor, que marca este regresso em livro, mas as palavras do nosso maior poeta vivo, Herberto Helder, que Diniz Conefrey transforma em imagens, que coloca num diálogo, tão conseguido como surpreendente, com o texto que as inspirou.
Em rigor, Os Labirintos da água, que o autor lança agora no seu próprio selo, depois da anunciada edição pela Assírio & Alvim não se ter concretizado, não é um livro novo, mas uma nova versão, revista, aumentada, com uma qualidade de impressão muito superior e um formato mais adequado, de Arquipélagos, livro publicado pela Editora Íman em 2001, que recolhia as adaptações à BD de dois textos de Helder: Aquele que dá a vida e Uma ilha em sketches. A estes dois textos, junta-se agora A máquina de emaranhar paisagens, uma terceira adaptação que, embora prevista desde o início, não estava ainda concluída quando António Cabrita, da Íman, decidiu avançar com a publicação do álbum.
Conforme Conefrey refere numa entrevista: “a ideia geral de Arquipélagos assenta em três ilhas do universo do poeta. Se Aquele que dá a vida é (…) uma narrativa de personagem, com uma acção central, diálogos e desenvolvimento temporal que no conjunto da adaptação não é literal; já em Uma ilha em sketches, o texto aparece completamente traduzido em imagens sequenciadas, vivendo sobretudo de um silêncio latente, quase palpável… Mas esses são dois textos em forma de prosa poética e pareceu-me imprescindível que este projecto contivesse também uma adaptação exclusivamente poética. A máquina de emaranhar paisagens predispunha-se inteiramente a isso.”

Ou seja, a três textos com características diferentes, responde Conefrey com abordagens diferentes. Em Aquele que dá a vida, Conefrey demonstra todo o seu domínio narrativo, numa adaptação clássica, mas muito bem-feita que, conservando o essencial do texto de Helder, o articula de forma perfeita com as suas imagens, de uma beleza telúrica, em que a criação de texturas aumenta a capacidade expressiva dos lápis de cera e do pastel, numa tradução perfeita da rudeza das gentes que protagonizam esta história violenta. Em Uma ilha em Sketches, numa opção arriscada, que se revela compensadora, Conefrey vai mais longe, abdicando mesmo das palavras de Herberto Helder, que surgem apenas antes da história, em texto corrido e que, na edição da Íman, estavam completamente ausentes.

Aquilo que podia parecer um sacrilégio (prescindir do texto do poeta) revela-se uma decisão acertada pois, mercê de um notável trabalho de cor, onde as influências de Mattotti se juntam a outras oriundas da pintura, como Van Gogh, Conefrey obtêm essa “ordenação abstracta das cores – violentas, delicadas – no cheiro estreme da maresia e da areia que já aquece”, de que fala Herberto.
Por último em “A máquina de emaranhar paisagens” a abordagem é muito mais livre, respondendo à própria estrutura do texto, e o(s) registo(s) gráfico(s) muito mais abstracto(s), misturando as mais diversas técnicas, da fotografia à colagem, passando pela aguarela e pelos lápis de cor, num caos organizado em que consegue, tal como tinha feito Alberto Breccia nas adaptações que fez dos contos de H. P. Lovecraft, “traduzir o intraduzível e representar o irrepresentável”.
Um dos livros do ano e, claramente, o mais belo livro do ano, Os Labirintos da Água mostra que Conefrey consegue ser simultaneamente fiel ao texto que adapta, sem abdicar da sua personalidade artística. O resultado é algo que, mais que Banda Desenhada é sobretudo “poesia desenhada”.                
(“Os Labirintos da Água”, de Diniz Conefrey, Quarto de Jade, 108 pags, 18 €) 
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 21/12/2013

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