Como bem saberão os que o tentaram, para um autor que viva e publique em Portugal, é praticamente impossível conseguir viver exclusivamente da Banda Desenhada. A insipiência da indústria dos quadradinhos nacional, a dificuldade de encontrar jornais ou revistas onde publicar o seu trabalho (e que paguem aos colaboradores), obrigaram vários dos nossos melhores desenhadores, de E. T. Coelho a Victor Péon, passando por Carlos Roque, a imigrarem para poderem (sobre)viver da Banda Desenhada.
Actualmente, o grande sonho da maior parte dos jovens autores portugueses, que pretendem embarcar na arriscada aventura de (tentar) viver da Banda Desenhada, é conseguir fazer carreira no atraente e competitivo mercado norte-americano. E, embora tal não seja fácil, por vezes esse sonho transforma-se mesmo numa realidade, mais ou menos duradoura. Depois de uma primeira geração, composta por Eliseu Gouveia, Miguel Montenegro e Ana Freitas, que conseguiu publicar alguns trabalhos no mercado americano, em inícios da década de 2000, mas sem grande continuidade, surge agora uma nova geração de desenhadores, composta por nomes como João Lemos, Nuno Plati, Ricardo Tércio, Filipe Andrade e Jorge Coelho, com histórias publicadas regularmente em editoras como a Marvel, ou a Image.
Ao contrário dos autores das gerações anteriores, que tiveram que emigrar para conseguirem trabalho fora de Portugal, os autores referidos neste texto trabalham para o mercado americano a partir das suas casas em Portugal, beneficiando das actuais facilidades de comunicação proporcionadas pela Internet e do próprio sistema de funcionamento da indústria americana dos comics, em que o “editor” (termo que nos EUA tem um significado diferente do que lhe dado em Portugal, designando não o dono da editora – o Publisher – mas sim quem faz o editing da história, sugerindo as alterações que considera necessárias aos autores) assegura a ligação entre a Editora e as várias pessoas envolvidas no projecto, que não necessitam de estar fisicamente próximas e que, muitas vezes, nem sequer se conhecem pessoalmente.
Se alguns destes autores desenham a lápis, passam a tinta e dão cor aos trabalhos que publicam, não é assim que as coisas geralmente funcionam no mercado americano. Por via do sistema de publicação mensal e dos prazos rigorosos que isso implica em termos de produção, a indústria dos comics aposta na especialização e numa separação de tarefas em que o argumento, o desenho a lápis, a passagem a tinta (ou arte-final) e a coloração são geralmente realizados por pessoas diferentes, com o editor a servir de elo de ligação entre todas elas.
Um editor com um papel muito importante no facto de haver tantos desenhadores portugueses com trabalhos publicados na Marvel, foi C. B. Cebulski, actual vice-presidente da Marvel, argumentista e grande descobridor de talentos que depois de ter tido acesso ao port-folio de João Lemos, que este tinha entregue ao Presidente da Marvel, Joe Quesada, não hesitou em contactar Lemos, para trabalhar com ele num projecto chamado Shiki. Embora essa série, inicialmente anunciada para sair em 2007, continue a aguardar publicação, a verdade é que Cebulski ficou tão impressionado com o trabalho de Lemos, que disse numa entrevista que o desenhador português: “é um artista com um estilo nunca visto. Ele vai ser uma grande estrela dos comics e a sua arte vai ter um valor incalculável na indústria, deixando um impacto estilístico muito ao género de Mike Mignola e de Bruce Timm.”,
Tendo tomado contacto com o trabalho de outros desenhadores portugueses, via João Lemos, Cebulski usou a série Marvel Fairy Tales para os lançar. Primeiro foi Ricardo Tércio a desenhar a história de Cebulski que adapta a lenda do Capuchinho Vermelho ao Universo Marvel, seguindo-se na série Avengers Fairy Tales, os trabalhos de João Lemos, Nuno Plati e novamente Ricardo Tércio. Um conjunto de trabalhos posteriormente recolhidos no livro Marvel Fairy Tales que, nas suas 144 páginas, tem nada mais de 94 páginas feitas por desenhadores portugueses, em estilos completamente diferentes e personalizados, que vão do traço etéreo e estilizado de Lemos, ao desenho mais “cartoony” de Tércio, passando pela elegância mais europeia de Plati.
Se na versão desenhada por João Lemos da história de Peter Pan, a cor é da responsabilidade de Christina Strain, Nuno Plati na sua versão de Pinóquio, assegura também as cores e a capa, tal como Ricardo Tércio, na sua versão do Feiticeiro de Oz, embora neste último caso, a capa seja da responsabilidade da francesa Claire Wendling.
De todos estes autores, Nuno Plati é o que mais histórias tem publicado na Marvel, com uma história curta para as revista Iron Man: Titanium (tal como outro português, Filipe Andrade, que também desenha uma história curta em Iron Man Titanium e divide o desenho de X-23 com Plati) e o desenho completo dos comics Shanna, the She Devil e Marvel Girl, a que se seguiu mais uma história curta para a revista Amazing Spider-Man 657, que assinala a entrada do Homem-Aranha para o Quarteto Fantástico, na sequência da morte de Johnny Storm, o Tocha Humana.
Mas se Nuno Plati, é o português cujo nome já apareceu em mais revistas da Marvel, o português que mais páginas desenhou para a “Casa das Ideias” é, indiscutivelmente Filipe Andrade, que os leitores portugueses bem conhecem da série BRK.
Andrade, além das histórias já referidas para as revistas X-23 e Iron Man: Titanium, assinou também os desenhos de Wellcome Home e Underneath the Skin, duas aventuras de Nomad, publicadas em complemento da história principal, nos nºs 608 a 614 da revista Captain America, antes de assegurar a arte dos quatro números da mini-série Onslaught Unleashed, actualmente em publicação e que ficará na história como a primeira mini-série da Marvel desenhada e colorida por portugueses, pois além dos desenhos de Andrade, as cores são da responsabilidade de Ricardo Tércio. E já em Setembro começa a sair nos EUA a mini-série John Carter, the Princess of Mars, em que Filipe Andrade assegura o desenho e as capas alternativas da nova versão do personagem de Edgar Rice Burroughs, prestes a chegar ao cinema num filme da Disney.
Também João Lemos ficará na história, mas como o primeiro português a escrever uma história para a Marvel, pois o desenhador português foi o argumentista de Wolverine: the Dust from Above, uma história do mais popular mutante da Marvel, desenhada pela italiana Francesca Ciregia. Lemos, que voltou a Wolverine como desenhador com The Adamantium Diaries, uma história curta, escrita por Sarah Cross para a revista Wolverine 1000. E o trabalho de Lemos não se limita à Marvel, pois ele foi um dos autores convidados por David Peterson para colaborar na série Legends of the Mouse Guard, editada pela Archaia Press, assinando como autor completo (argumento, desenhos cor e legendagem) a história que funciona como epílogo à edição encadernada.
Referência ainda um novo projecto independente, ainda em fase de desenvolvimento, chamado Mia, Tales from the Lost Islands, que vai juntar Nuno Plati e João Lemos, de que esperamos voltar a ouvir falar e que, depois das colaborações entre Nuno Plati e Ricardo Tércio, confirma a tendência dos autores portugueses para trabalharem juntos.
Outro autor português que também tem publicado nos Estados Unidos, mas sem ser na Marvel, é Jorge Coelho, de quem a Image publicou Forgetless, uma mini-série escrita por Nick Spencer, em que Coelho divide os desenhos com W. Scott Forbes e Marley Zarcone. Coelho que se estreou no mercado americano como desenhador de Below the Fold, uma história curta, escrita e colorida por Eric Skillman, publicada na antologia de histórias policiais EGG, auto-editada por Skillman.
O mais recente trabalho de Coelho para a Image, The Weel Turns, uma história curta de D. K. Stockton, publicada no 2º volume de Outlaw Territory, uma antologia de histórias do Oeste, conta mais uma vez com cor de Skillman, numa parceria que se irá prolongar na novela gráfica Submerged Mary, escrita por Eric Skillman e ainda à procura de editor.
Mas estes não são os únicos portugueses a publicar BD nos EUA. Também Filipe Melo conseguiu levar o seu Dog Mendonça às páginas da revista Dark Horse Presents. Um título prestigiado, que inaugurou a actividade editorial da Dark Horse em 1986 e onde o Sin City de Frank Miller foi publicado pela primeira vez. Vinte e cinco anos depois, a editora lançou uma nova versão da revista, com 25 números previstos. Essa nova antologia, cujo primeiro número saiu em Maio nos EUA, terá participações, entre outros autores, de Frank Miller (com uma entrevista e uma preview da prequela de 300 intitulada Xerxes), Mike Mignola (Hellboy), Neal Adams, Richard Corben e Dave Gibbons (Watchmen), entre muitos outros.
É para esta revista que Filipe Melo e Juan Cavia contribuíram com uma história de 24 páginas, dividida em três capítulos de 8 páginas, que vai ser publicada nos nº 4, 5 e 6 e tem como objectivo apresentar Dog Mendonça e os restantes personagens ao público americano, preparando o terreno para a posterior publicação pela Dark Horse de As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy nos EUA.
Uma excelente oportunidade que se deveu à intervenção decisiva de John Landis. O realizador americano, que assinou o prefácio do álbum, gostou tanto do livro que fez chegar Dog Mendonça às mãos do seu amigo Mike Richardson, o editor da Dark Horse, que se mostrou interessado na série e viu na revista Dark Horse Presents o local ideal para uma primeira divulgação das personagens junto dos leitores americanos.
Se a tudo isto acrescentarmos a biografia em BD de Angelina Jolie, editada em Janeiro de 2011 pela Editora americana Blue Water, especializada em biografias em Bd de personalidades célebres, de Obama a Oprah, que tem desenhos de Nuno Nobre, um arquitecto, designer e ilustrador português, a viver e trabalhar entre Madrid, Lisboa e Nova Iorque e que assim se estreia na BD, não há dúvidas que o sonho americano dos autores de BD se desenha cada vez mais em português.
Versão actualizada do texto publicado no nº 10 da revista Bang!, em Maio de 2011
quarta-feira, 17 de agosto de 2011
O Sonho Americano desenha-se em Português
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