quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Evocando Jack Kirby, a propósito do Quarto Mundo


 Na altura em que escrevi o editorial para o volume da Colecção Super-Heróis DC dedicado ao Quarto Mundo, de Jack Kirby, fiquei com a sensação de que muito tinha ficado ainda por dizer sobre a obra mais pessoal do King Kirby. mas as limitações de espaço (e as alterações impostas pela DC ao mesmo texto original), acabaram por condicionar fortemente o texto publicado no livro. Felizmente, a revista Bang!, como de costume, deu-me carta branca para escrever o que quisesse, sem limites de espaço, ou censura e o resultado é o texto que podem ler a seguir, publicado no nº 20 da revista Bang!, publicação gratuita produzida pela Saída de Emergência que já se encontra em distribuição pelas lojas FNAC de todo o país, desde finais de Julho. Obrigado ao Luís Corte-Real e à Safaa Dib por acolherem os meus textos, sem qualquer condicionante, ou limitação. 


EVOCANDO JACK KIRBY 
NO 45º ANIVERSÁRIO DO QUARTO MUNDO

No preciso mês em que se completam 45 anos sobre a publicação do nº 1 da revista New Gods, os leitores portugueses tiveram finalmente a oportunidade de aflorar esse complexo universo, graças à publicação pela Levoir no final de Março, de um volume antológico, que recolhe um punhado de histórias do Quarto Mundo de Jack Kirby, obra maior do mais importante criador de histórias de super-heróis.
Extraordinário criador, capaz de se reinventar continuamente, Jack King Kirby, nasceu como Jacob Kurtzberg, em 1917 e começou a sua carreira artística em 1936, trabalhando em animação no estúdio dos irmãos Fleischer, onde colabora na série Popeye. Em 1939, ingressa nos estúdios Eisner/Iger, onde trabalhou também Bob Kane, o criador de Batman. Aí, sob a orientação de Will Eisner - que relata esses momentos na graphic novel The Dreamer - Kirby esteve directamente ligado ao arranque da indústria dos Comics, produzindo o mais variado tipo de histórias, para várias publicações. Ao longo de uma carreira de décadas, Kirby abordou os mais diversos géneros, do Western, às histórias românticas, passando pelas histórias de monstros e o policial negro, mas foi como criador de super-heróis que ganha um lugar maior na história da Banda Desenhada.
Um percurso que começou em 1940, ao lado de Joe Simon, com quem criou o Capitão América, que inclui títulos como Sky Masters, Black Magic e Chalengers of the Unknown, durante os anos 50, e teve o seu apogeu na década de 60, ao lado de Stan Lee, com a criação da maioria dos heróis da Marvel, de Thor aos Inumanos, passando pelos X-Men, com destaque para o Quarteto Fantástico, em cujas histórias vão aparecer Galactus e o Surfista Prateado, numa história épica, onde a dimensão cósmica da sua arte, que atinge o apogeu com o Quarto Mundo, tem aqui o seu primeiro grande momento.
Se os fãs tinham bem consciência da importância de Kirby no sucesso da Marvel, já os novos donos da editora não estavam tão bem informados, propondo-lhe um contrato de renovação que o seu biógrafo, Mark Evanier descreve como “insultuoso”. Desiludido pela falta de reconhecimento (crítico e material) do seu contributo para a criação do universo Marvel, quando comparado com a atenção dedicada a Stan Lee, Kirby decide trocar a Marvel pela DC no início da década de 70, regressando assim a uma casa para onde já tinha trabalhado com alguma regularidade durante as décadas de 40 e 50, criando a Newsboy Legion, ou reformulando heróis como o Arqueiro Verde, ou o Sandman.
É ai, contando com total liberdade e autonomia, que Kirby vai desenvolver uma ideia que tinha tido nos anos 60, enquanto trabalhava na série Thor, que consistia em explorar o Ragnarok, a morte dos velhos Deuses, como ponto de partida de uma saga épica, que lançasse uma nova mitologia. Esse projecto, irrealizável na Marvel, pois a editora nunca o deixaria matar os Deuses de Asgard, como o Poderoso Thor, vai ser concretizado na DC, dando origem ao Quarto Mundo. Uma saga épica, de uma dimensão cósmica, que levava o termo Larger than Life a uma escala inusitada, inteiramente editada, escrita e desenhada pelo King, cujo contrato com a editora o obrigava a produzir um mínimo de 15 páginas de BD por semana, contando apenas com a participação de Vince Colletta na passagem a tinta dos seus desenhos a lápis.
Ainda antes da saída dos três novos títulos que contam a saga dos Novos Deuses e o combate entre Nova Génese e Apokolips, os personagens do Quarto Mundo fazem a sua aparição gradual na revista Superman's Pal Jimmy Olsen, o primeiro título onde Kirby trabalha no seu regresso à DC, e para o qual vai recuperar personagens como o Guardião e a Newsboy Legion, criadas aquando da sua primeira passagem pela DC (então National Comics) e introduzir conceitos inovadores, como a clonagem e a nanotecnologia.
A presença do Super-Homem na revista - mesmo que os rostos do Homem de Aço e de Jimmy Olsen fosse redesenhadas por Al Plastino, e mais tarde, por Murphy Anderson, para ficarem mais próxima da imagem oficial do Super-Homem na época, que tinha como modelo o Super-Homem desenhado por Curt Swan -  permitiu apresentar as personagens do que viria a ser o Quarto Mundo, a um leque mais vasto de leitores, abrindo o caminho ao lançamento em Fevereiro/Março de 1971 do primeiro número da revista New Gods, a que se seguiram as revistas The Forever People, no mesmo mês  e Mister Miracle, em Abril, completando o conjunto de quatro títulos bimestrais (o que obrigava Kirby a desenhar duas revistas por mês) que contam a história do Quarto Mundo.
Curiosamente, nem o próprio Kirby percebeu muito bem de onde apareceu o termo “Quarto Mundo”, pois a série deveria chamar-se New Gods, mas quando a revista pensada para ter como título Orion, saiu com New Gods na capa, a DC foi obrigada a arranjar um novo título para a série. Mas, com um título ou com outro, o resultado continua a ser uma série extremamente inovadora, na forma como os quatro títulos se articulam, formando uma intricada tapeçaria, pensada para ser recolhida como uma obra fechada, após a sua publicação inicial em revista. Como refere Mark Evanier: “a história, que ele via como finita pelo menos no seu arco inicial, tinha como tema a guerra contra um vilão intergaláctico chamado Darkseid. Essa batalha iria ocupar várias centenas de páginas antes de terminar num final épico. Depois, Kirby esperava que toda essa saga seria editada e recolhida numa série de volumes bem impressos a cores, que estariam sempre disponíveis nas livrarias, como acontece com os livros de Tolkien. “
O tema central da saga dos Novos Deuses é a eterna luta entre o Bem e o Mal, representados por Nova Génese e Apokolips, dois mundos opostos nascidos do conflito cósmico que levou à queda dos Velhos Deuses e ao aparecimento dos Novos Deuses. Para pôr um termo à guerra sem quartel que ameaçava destruir galáxias, Izaya, o Pai Supremo de Nova Génese e o impiedoso Darkseid de Apokolips, decidem trocar filhos como reféns, de modo a assegurar uma trégua. Assim, Orion, o filho de Darkseid vai ser criado em Nova Génese, enquanto Scott Free, o filho de Izaya, é enviado para Apokolips.
É precisamente este momento fulcral da história do Quarto Mundo, que é contado em flashback em O Pacto, episódio que abre o volume da Levoir e que o próprio Kirby considerou em diversas entrevistas como a melhor história que já fez. Este episódio é também importante por dar a conhecer a origem de Scott Free, cuja fuga de Apokolips para a Terra, onde se tornará o Mr. Miracle, traz a guerra entre Apokolips e Nova Génese para o nosso mundo e dá a Darkseid o pretexto ideal para pôr fim à trégua entre Nova Génese e Apokolips. Inspirado directamente no autor de BD, Jim Steranko, que substituiu Kirby como desenhador de Nick Fury e se dedicava ao escapismo, na melhor tradição de Harry Houdini, Scott Free, o Mr. Miracle, vai ser uma figura fulcral do Universo DC, formando com a guerreira Big Barda, um dos raros casais assumidos das histórias de Super-heróis, onde os namoros se prolongam por décadas…
Para além de Big Barda, inspirada visualmente na actriz e cantora Lainie Kazan, a série deu origem a personagens fantásticos, como Metron, que viaja entre o espaço e o tempo na sua cadeira de Moebius, ou caricatas, como Glorious Godfrey, ou o vigarista Funky Flashman, que, dizem as más-línguas, apresentava mais do que uma simples parecença física com Stan Lee… Mas a maior criação de Kirby na série, foi o vilão Darkseid, cujas feições se inspiraram no actor Jack Palance, que ainda hoje continua a ser a encarnação suprema do Mal no Universo DC.
Se quisermos encontrar um adjectivo que melhor descreva o trabalho de Kirby em O Quarto Mundo, o único adequado é mesmo kirbyesco, mas épico, também está bastante próximo. Essa dimensão épica está patente na força majestática dos desenhos, na imponência das arquitecturas a que apenas as duplas páginas faziam justiça, na corporalidade miguelangelesca das figuras que se retorcem em poses barrocas, na pura energia que irradia das páginas cheias de acção, na maquinaria impossível, radiante de poder, que Kirby desenhava como ninguém, e também no próprio tom empolado da narrativa e dos diálogos. Aspectos que, aliados aos próprios nomes das personagens, que rementem para a Bíblia (como Izaya e Esak), para a mitologia clássica (como Orion), ou para a literatura - Desaad, o torturador remete para o Marquês de Sade e Kalibak, o filho monstruoso de Darkseid, evoca o Caliban, de A Tempestade, de Shakespeare - mostram a vontade de Kirby em criar uma mitologia para o século XX, pois como o próprio refere numa entrevista de 1984, republicada, quase três décadas mais tarde, na revista Jack Kirby Collector: "com os Novos Deuses, senti que estava a criar uma mitologia para os nossos tempos. Parecia-me que essa mitologia entretinha os leitores, como era o meu objectivo. O que eu estava a fazer era uma parábola dos nossos tempos."
Mas a verdade é que, ao contrário do que o próprio Kirby pensava, a sua criação estava muito à frente do seu tempo e os leitores não estavam ainda preparados para uma história cuja acção se espraiava por quatro títulos diferentes e que lhes pedia uma capacidade de assimilar um grande leque de personagens e de cenários, que fugiam daquilo a que estavam habituados.
O resultado - a que a queda abrupta das vendas de BD nos quiosques, numa altura em que ainda não existia uma rede de livrarias especializadas, ajudou - foi o cancelamento das revistas New Gods e The Forever People ao fim de apenas 11 números e de Mr. Miracle (a mais próxima do registo tradicional das histórias de super-heróis) após 18 números, numa fase em que a história idealizada por Kirby estava ainda bem longe de estar contada.
Só em 1984, aproveitando a reedição da série New Gods, como uma mini-série de seis volumes, Kirby pôde continuar a contar a história dos Novos Deuses, primeiro, com Even Gods Must Die, uma nova história de 48 páginas, incluída no sexto volume dessa reedição, e depois com The Road to Armagetto, uma história de 22 páginas que não chegou a ser publicada, mas cujas páginas foram aproveitadas em The Hunger Gods, uma novela gráfica original, que concluiu, de forma mais ou menos satisfatória a série, deixando no entanto a porta aberta para a utilização das personagens criadas pelo King por outros autores.
Mesmo que Kirby nunca tenha conseguido contar a história que queria, da maneira como queria, o impacto do Quarto Mundo no universo DC é incontornável. Basta ver histórias como The Cosmic Odissey, de Jim Stralin e Mike Mignola, ou as experiências de Walt Simonson com as personagens dos New Gods. Também Mr. Miracle e Barda vão sobreviver ao Quarto Mundo, sendo presença regular no Universo DC e assumindo um papel fundamental na divertidíssima fase da Liga da Justiça escrita por Keith Giffen e J. M De Matteis. Isto já para não falar em Darkseid, que é presença regular na era Novos 52 e que, ao que tudo indica, será o vilão de serviço no filme da Liga da justiça que Zack Snyder está preparar.
Como refere Brent Staples, num artigo publicado no New York Times em 2007, Kirby: “criou uma nova gramática para a narrativa em BD e uma forma cinematográfica de tratar a acção. Personagens antes rígidas saltam de quadrado em quadrado – ou mesmo de página para página – para cair directamente no colo do leitor. A força dos murros desferidos torna-se visível de forma explosiva. Mesmo em repouso, as personagens de Kirby pulsavam de tensão e energia de uma maneira que faz com que as suas versões cinematográficas pareçam estáticas em comparação.”
É por isso que o trabalho de Kirby permanece incontornável, e a edição da Levoir, mesmo que recolha pouco mais de um décimo das páginas que Kirby desenhou da Saga dos Novos Deuses, é uma óptima porta de entrada para o universo fantástico de Jack King Kirby.
Publicado originalmente na revista Bang! nº 20, de Julho de 2016

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