domingo, 4 de dezembro de 2011

Os ratos Guerreiros: de Mouse Guard a Mice Templar

Dos patos da Disney às Tartarugas Ninja de Eastman e Laird, passando por um clássico como La Bête est Morte, de Calvo, que quase 50 anos antes do Maus, de Art Spiegelman, descreve os acontecimentos da II Guerra Mundial, usando animais antropomorfizados em vez de humanos, até Usagi Yojimbo, o coelho samurai de Stan Sakai e os romances e as BDs protagonizadas por Gerónimo Stilton, não faltam exemplos de histórias de Banda Desenhada protagonizadas por animais antropomorfizados, que em alguns casos, podiam sem grandes alterações ter personagens humanas como heróis. É o caso de The Mice Templar, de Bryan J. L. Glass e Michael Avon Oeming e de Mouse Guard, de David Petersen, duas séries recentes de fantasia medieval, que têm a particularidade de serem protagonizadas por pequenos ratos hábeis com a espada.
Apesar de as duas séries terem chegado às livrarias americanas quase ao mesmo tempo (Mouse Guard em 2006 e The Mice Templar em 2007), isso não passou de uma coincidência, pois Michael Avon Oeming publicou a primeira história dos ratos templários no seu blog em 1997, para só voltar ao projecto em 2003, já com Glass como co-argumentista, enquanto que Petersen começou a trabalhar a ideia durante o liceu, influenciado pelo filme Robin Hood da Disney e pelo universo do jogo Dungeons and Dragons, para voltar a pegar nela já nos seus tempos na universidade, desta vez numa perspectiva "mais próxima das fábulas de Esopo, em que os animais são mesmo animais”.
De qualquer modo nenhum dos autores acusa o outro de lhe ter roubado a ideia. Ideia essa que, como vimos, não é propriamente original e que Bill Willingham (o criador da série Fables, onde, curiosamente, há uma Mouse Police...) no prefácio ao 1º volume de The Mice Templar, remonta a Reepicheep, o ratinho espadachim das Crónicas de Nárnia, de C. S. Lewis. E a comprovar a boa relação de Oeming e Glass, com Petersen, está o projecto de uma cross-over entre Mouse Guard e The Mice Templar, em que participaria também a Mouse Police, de Willingham, numa história curta destinada a ser publicada em alguma iniciativa de apoio à indústria dos comics e aos direitos dos seus criadores.
Mas vejamos um pouco melhor estas duas histórias, tão semelhantes na sua premissa inicial, mas bem diferentes na forma como a desenvolvem, começando pela Mouse Guard, de David Petersen.
Projecto independente, escrito, desenhado e editado pelo próprio David Petersen e distribuído pela Editora Archaia, The Mouse Guard foi inicialmente publicado no formato de mini-séries, antes de cada história ser recolhida em livro. Optando por um pouco convencional formato quadrado, a série não teve dificuldade em sobressair no meio das centenas de comics publicados mensalmente, pois o seu formato diferente trouxe-lhe uma maior visibilidade. Como explica Petersen: “como a maioria das lojas especializadas têm prateleiras e divisórias com formatos fixos, onde a minha revista não cabia, acabaram por a colocar no balcão, ao lado da caixa registadora, ou em mostruários, e isso funcionou muito bem em termos comerciais.(…) “O primeiro número foi lançado a uma quarta-feira, dois dias antes da 1ª New York Comic Con (um dos maiores Festivais de BD americanos, a par com San Diego) e tive vários lojistas que foram ter comigo ao meu stand durante a convenção, para buscar mais comics, pois em dois dias tinham esgotado duzentos e cinquenta exemplares da minha revista. Foi aí que percebi que The Mouse Guard ia ser um sucesso!”
A série relata as aventuras da Mouse Guard, uma ordem militar criada para proteger os ratos durante as viagens entre as diversas cidades escondidas, quando têm que atravessar zonas onde ficam muito mais expostos ao predadores naturais, como corujas, cobras, ou doninhas.
Ou seja, apesar do contexto de fantasia medieval, com ratos guerreiros, cidades escondidas e templos subterrâneos, há uma grande preocupação naturalista na forma como os ratos e os seus inimigos são representados e se movimentam, com Petersen a desenhar a partir de fotografias de animais, ou utilizando animais mortos como referência, como na cena do primeiro livro em que os ratos são atacados por caranguejos à beira-mar, desenhada a partir dos caranguejos que Petersen comprou no mercado.
Depois das duas primeiras mini-séries, Fall 1152 e Winter 1152, a terceira série, The Black Axe, actualmente em publicação, é uma prequela que conta a história de Celanawe e de como ele descobriu o machado negro, uma arma mítica cujo poder os leitores descobriram na segunda série. Pelo meio, ainda houve espaço para Legends of the Guard, uma antologia em que diversos autores, entre os quais o português João Lemos (como já vimos na última Bang!) prestam a sua homenagem aos ratos de Petersen, escrevendo e desenhando uma história passada naquele universo. O ponto de partida de Legends of the Guard, é o mesmo dos Canterbury Tales, ou de World’s End, um arco de histórias do Sandman de Neil Gaiman, com uma série de personagens reunidas numa estalagem, que contam histórias para passar o tempo, encarregando-se Petersen das páginas de ligação entre as várias histórias desta antologia, premiada na última San Diego Comic Convention, com o Eisner (o mais prestigiado prémio da indústria dos comics, uma espécie de Óscar da BD) para a melhor antologia, elevando para três o número de Eisners ganhos pela série.
Mas o sucesso da Mouse Guard não se ficou só pela Banda Desenhada, pois a série deu origem a um premiado jogo de Role Play, criado por Petersen e pelo designer de jogos Luke Crane, que desenvolve o universo da série. Série essa que poderá chegar também ao cinema, pois não faltam estúdios e realizadores interessados nisso.
Se Mouse Guard deu a conhecer David Petersen aos leitores, já Michael Avon Oeming não precisou da série The Mice Templar para isso. Desenhador da popular série Powers, escrita por Brian Michael Bendis, Oeming não é estranho ao género da fantasia, pois foi o argumentista dos primeiros números da nova versão de Red Sonja, a guerreira criada por Robert E. Howard na série Conan. E o mundo em que se movem os ratos templários de Oeming está bem mais próximo do universo de Howard, ou de Tolkien, do que do de Petersen.
Se Mouse Guard é uma obra coral, com o protagonismo a ser dividido por meia dúzia de ratos guerreiros, The Mice Templar tem um herói bem definido, o jovem Karic, cujo percurso iniciático acompanhamos ao longo da série, desde que um exército de ratazanas ataca a sua aldeia, matando ou fazendo prisioneiros os seus familiares. O título do primeiro volume, The Prophecy deixa logo perceber que Karic, apesar da sua aparente fraqueza, é o escolhido pelo Deus Wotan para restaurar a antiga glória da Ordem dos Ratos Templários, que dissenções internas tinham levado à decadência.
Prevista para quatro volumes, a série viu no segundo volume Michael Avon Oeming ceder o lugar ao espanhol Victor Santos como desenhador principal, de modo a conseguir manter um ritmo de publicação regular, algo que não tinha sido conseguido na primeira série, devido aos muitos afazeres de Oeming. Conhecido nos EUA graças à sua colaboração com Brian Azzarello (100 Bullets) em Filthy Rich, uma novela gráfica que inaugurou a colecção Vertigo Crime, Santos não é estranho ao universo da fantasia, tendo criado uma série muito popular em Espanha, Los Reyes Elfos (cujo primeiro volume foi publicado em Portugal pela Polvo) que se move nas mesmas águas. Curiosamente, por estar ocupado a desenhar The Mice Templar, Santos viu-se obrigado a convidar outros desenhadores espanhóis, como Vicente Cinfuentes, para desenhar Los Reyes Elfos…
Passada num universo de fantasia, onde há deuses, demónios e até um gato zombie, The Mice Templar tem uma carga de fantástico que não existe em The Mouse Guard, do mesmo modo que os diálogos e a narração têm um peso muito maior na série de Oeming e Glass do que na de Petersen, em que os diálogos são bastante mais sucintos e não existe um narrador. Do mesmo modo, enquanto a condição de ratos é inerente ao comportamento das personagens da Mouse Guard, já a história de The Mice Templar podia perfeitamente ser contada com recurso a humanos, ou a outros animais, em vez dos ratos estilizados de grandes orelhas, criados por Oeming.
Entre a sangrenta fantasia clássica protagonizada por ratos, de Oeming, Glass e Santos, ou a fábula para todas as idades criada por Petersen, cabe ao leitor escolher qual a que prefere, sabendo que em ambas vai encontrar ratos guerreiros e uma leitura agradável.
Texto originalmente publicado no nº 11 da revista Bang!, de Outubro de 2011

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