quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

LISBON CALLING: Os ícones da América visto pelos ilustradores portugueses


O último texto deste blog em 2015, tem uma particularidade especial. Apesar de ter sido escrito para uma publicação específica (o Catálogo do último AmadoraBD) mantinha-se inédito, em virtude do dito catálogo, que este ano, pela primeira vez, não teria direito a uma  versão impressa, não ter saído ainda sequer em formato digítal, mais de dois meses após o final do Festival.
Por isso, aqui o deixo, tal como foi escrito e fazendo referência apenas às peças que tinham sido entregues na altura em que redigi o texto.
Resta-me desejar um bom ano aos leitores deste blog, onde prometo regressar, logo no início de 2015, com a habitual lista das 10 Melhores BDs que li no ano que findou. 

LISBON CALLING: UM CONVITE DA EMBAIXADA AMERICANA AOS ARTISTAS PORTUGUESES

Entre as dezenas de milhares de visitantes que se deslocaram ao Fórum Luís de Camões durante os dezassete dias que durou o último AmadoraBD, houve um visitante muito especial. Robert Sherman, o Embaixador norte-americano em Portugal que, tendo-se deslocado à Amadora expressamente para visitar a exposição dedicada aos 75 Anos do Batman, acabaria por visitar as restantes exposições que compunham o núcleo central do Festival.
 Tendo colaborado directamente com Lawrence Klein no comissariado das exposições dedicadas aos 75 Anos do Batman e ao Surfista Prateado, outra personagem icónica dos Comics, tive o privilégio de fazer a visita guiada ao Embaixador. Umas das coisas que mais fascinou Robert Sherman na mostra dedicada ao septuagésimo quinto aniversário do Cavaleiro das Trevas, foi a recriação, feita por autores portugueses (e pelos argentinos Juan Cavia e Santiago Villa) de algumas das capas mais importantes da série, cujos originais não foi possível localizar.
 Logo ali, o embaixador sugeriu organizar para a edição seguinte do Festival, uma exposição, com o alto patrocínio da Embaixada, para divulgar o trabalho desses artistas nacionais, muitos deles a trabalhar directamente para o mercado americano. Mostrando que nem todos os políticos são iguais, Robert Sherman cumpriu a sua promessa e a mostra Lisbon Calling, organizada em conjunto pela Embaixada americana e pelo AmadoraBD, aqui está para o provar.
O convite, que era também um desafio, que o embaixador Sherman dirigiu aos desenhadores portugueses, através de Lawrence Klein, que comissariou a exposição a partir dos Estados Unidos, foi para que criassem, em total liberdade, imagens com personagens da cultura Pop americana em cenários portugueses, ou versões portuguesas de heróis americanos da BD ou do cinema. Ou seja, imagens que reflectissem o diálogo entre as duas culturas, recriando, deste lado do Atlântico, os ícones da cultura americana, que os comics e o cinema tornaram globais.
 A este desafio responderam com prontidão mais de uma dezena de artistas, na sua maioria membros integrantes do Lisbon Studio, um colectivo de autores (cuja composição vai variando conforme as entradas e saídas do estúdio) que partilham um atelier num apartamento em Lisboa, perto da Estação de Santa Apolónia e que têm aproveitado as sinergias resultantes desse convívio diário, para participarem activamente em projectos como este, ou editarem uma revista on-line com trabalhos dos seus elementos.
Curiosamente, quem melhor captou a essência do desafio, através de uma composição espectacular, tanto em termos cenográficos, como de detalhe e composição, foi Penim Loureiro, que nem é membro do Lisbon Studio. O arquitecto e autor de Banda Desenhada, que já no ano passado tinha participado na exposição do Surfista Prateado, recriando uma página emblemática de Moebius, pega agora num dos mais famosos monumentos de Lisboa, o Padrão dos Descobrimentos, criado para a Grande Exposição do Mundo Português, de 1940, substituindo os navegadores por personagens dos comics, com o Batman, no lugar do Infante Dom Henrique, secundado por heróis como o Superman, Robin, Mulher-Maravilha, Arqueiro Verde, Demolidor, Rocketeer, Príncipe Valente, Wolverine, Homem de Ferro, Hellboy, Lanterna Verde, Lobo e Deadpool, com o Doutor Destino e o Marv de Sin City a erguerem um padrão, numa réplica perfeita das poses das figuras do lado este do monumento desenhado por Cotinelli Telmo e esculpido por Leopoldo de Almeida.
Como refere Penim Loureiro: “Quando o Lawrence Klein me convidou a fazer uma ilustração da fusão entre a cultura comics dos EUA e a de Portugal, pensei mais na contaminação cultural.
Seleccionei um marco na paisagem, com algum carácter maniqueísta, apelo ao imaginário português tão simplificado como a cultura americana. O Padrão dos Descobrimentos - mais propaganda e posse de "peito tufado" que humanidade - pareceu-me o momento (monumento que subverte a temporalidade) mais indicado. Este entrosamento de imagética exibicionista e fruição facilmente se transformou num grupo de super-heróis norte americanos em clássica posse escultórica. O resultado parece natural, no fim de contas as personagens modeladas por Leopoldo de Almeida, em 1939, não eram de carne e osso; eram mitos. Heróis que nos fazem esquecer da nossa fragilidade.”
Entre os heróis que repetem a sua presença na exposição, temos o Wolverine, o mais popular integrante dos X-Men, que, para além do Padrão dos Descobrimentos, surge a recorrer aos serviços de um amolador de tesouras para afiar as garras, numa ilustração de Joana Afonso e numa versão feminina, como Wolvarina, personagem fruto da ligação de Wolverine com uma varina de Lisboa, nascida da imaginação de Ricardo Cabral.

Outro herói também presente na composição do Padrão dos Descobrimentos, que vai ser aproveitado por outro autor, é o Superman. O Homem de Aço que Osvaldo Medina, coloca a cantar o fado, numa casa de fados. O mesmo sucede com o Batman, que Pedro Ribeiro Ferreira coloca multiplicado de fato e gravata, nas escadarias da Assembleia da República, numa evocação do escândalo das “viagens fantasma”, protagonizado por um deputado que ficou com a alcunha precisamente de “Batman”. Também os Peanuts, de Charles Schulz, estão presentes em duas imagens, através de Charlie Brown. Pepe Del Rei mete-o, e ao Snoopy, numa cena do filme Pátio das Cantigas (o original, com António Silva, naturalmente) a provocar o Evaristo, enquanto Marta Teives o põe agarrado à traseira de um eléctrico (possivelmente o 28) para subir uma das sete colinas de Lisboa.
 Os Vingadores, ou Avengers, que o cinema transformou no mais popular gupo de super-heróis da actualidade, estão numa divertida recriação de João Tércio, através de quatro falsas capas de revistas, que os reúne (como The Agenders) para uma sardinhada, para além de dar um toque bem português aos seus principais membros, transformando o Homem-Aranha em Spider-Mané, um típico “pintas” lisboeta, com bigode, barriga de cerveja e o cigarro ao canto da boca; o Capitão América em Sardine America (o que vem tornar algo estranha a sua presença numa sardinhada, com os restantes Agenders…), enquanto o Homem de Ferro se transforma no Iron Soccer, um cruzamento entre o Cristiano Ronaldo e o Homem de Ferro, da Marvel.
Outro membro dos Vingadores em destaque, é o Poderoso Thor, que Filipe Andrade desenha a sair do bar Viking, local emblemático da “noite” do Cais do Sodré. Mas as referências escolhidas pelos ilustradores portugueses não se ficam pela BD. Também o cinema está presente, seja na homenagem de Dileydi Florez ao filme de The Nightmare Before Christmas, de Tim Burton, cujas personagens são transpostas para Alfama durante os Santos populares, seja no encontro entre Marilyn Monroe e o Zé Povinho, encenado por Pedro Ribeiro Ferreira.
O mesmo podemos dizer em relação às personagens da televisão, pois o “nosso” Zé Gato (o primeiro detective da TV portuguesa) surge ao lado de Jessica Rabitt, numa ilustração de Pep Del Rei, enquanto Marta Teives coloca o Scooby Doo e os seus amigos, a fugirem de um Olharapo. Abordagem diferente é a seguida por Nuno Duarte (que assina “o outro Nuno” para não ser confundido com o argumentista seu homónimo) que recria duas imagens icónicas, introduzindo-lhes elementos tipicamente portugueses. Assim, na capa da revista Mad, que se transforma em Toma!, em vez Alfred E. Neuman - a mascote da revista, cuja cara está sempre em destaque nas capas, substituindo a personalidade, ou personagem, que é alvo de paródia - temos o “nosso” Zé Povinho, a fazer o típico “manguito”. O mesmo sucede na outra imagem que criou para esta exposição, que parte do célebre cartaz do Buffalo Bill’s Wild West Circus, substituindo o mais famoso dos cowboys, por um campino chamado JoaQuim Touro, enquanto que o Circo do Velho Oeste dá lugar ao Grupo de Forcados Amadores.
Finalmente, Pedro Ribeiro Ferreira cria uma daquelas sardinhas ilustradas que se tornaram um dos símbolos das Festas de Lisboa e da criatividade da ilustração nacional, enchendo-a de símbolos imediatamente reconhecíveis da América, do Tio Sam a Hommer Simpson, passando pelo Calvin, ou Rato Mickey. Ingredientes semelhantes, tem a salada criada por Nuno Lourenço Ferreira, onde caretos e galos de Barcelos se misturam com o Hulk, Homem-Aranha e Tartarugas Ninjas, num prato de aspecto apetitoso, temperado com as cores da bandeira portuguesa.
Toda esta diversidade e criatividade poderão ser  vistas durante o período em que decorre o Festival. Mais tarde, as peças viajarão naturalmente para os E.U.A, e em 2016 está também prevista a sua exibição no Festival de Lodz, na Polónia, dando assim outra visibilidade a este saboroso desafio intercontinental a que os artistas portugueses tão bem souberam responder.
Texto escrito originalmente para o Catálogo do 26º Amadora BD, ainda a aguardar publicação digital.

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