quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Batman Noir de Azzarello e Risso


Este ano editorial da Levoir não podia terminar melhor do que com a edição de Batman Noir, uma recolha das histórias do Batman da dupla Azzarello e Risso, apresentadas num preto e branco que realça a fantástica arte de Eduardo Risso. Lançado na Comic Con, onde esgotou durante a tarde de sábado, o livro foi depois distribuído com o jornal Público no domingo, encontrando-se disponível nos quiosques de todo o país. Na Comic Con, foi um prazer reencontrar Eduardo Risso, que entrevistei em 2005, para a revista Comix, e conhecer Brian Azzarello, que se revelou bastante mais divertido do que a sua imagem pública deixa transparecer. 
Como neste caso, para além do texto para o Público, assinei também o editorial do livro, deixo-vos com o editorial, ficando o texto do Público reduzido à imagem imediatamente abaixo.


BATMAN A PRETO E BRANCO, 
OU AS SOMBRAS DE EDUARDO RISSO

Embora seja o mais popular herói do Universo DC, o Batman, antes de ser um super-herói é, acima de tudo, um detective, dimensão bem evidente nas primeiras histórias do herói criado por Bob Kane, com a colaboração de Bill Finger, que se estrearia, não por acaso, nas páginas do nº 27 de uma revista chamada… Detective Comics. Entre os autores que melhor souberam explorar essa dimensão mais detectivesca do Cavaleiro das Trevas estão o escritor Brian Azzarello e o desenhador Eduardo Risso, autores que, embora sejam mais conhecidos pela premiada série 100 Bullets, têm uma ligação ao Batman, tão longa quanto frutífera.
Este volume recolhe precisamente os momentos principais dessa ligação, apresentando-os num glorioso preto e branco, que realça o extraordinário trabalho gráfico do argentino Eduardo Risso. De fora, fica apenas a história de 12 páginas publicada semanalmente em 2009 no projecto Wednesday Comics, pensada para o grande formato de 36 cm x 50,5 cm, dos suplementos dominicais dos jornais clássicos, onde saíram séries como o Little Nemo de Winsor McCay, e que ficaria praticamente ilegível ao ser drasticamente reduzida para o formato tradicional dos comics americanos.
Embora seja essencialmente um autodidacta, Eduardo Risso frequentou um curso de seis meses com o “viejo” Alberto Breccia, o desenhador de Mort Cinder e é precisamente a Breccia e ao seu compatriota José Muñoz (o desenhador de Billie Holiday) que Risso vai beber a sua apurada técnica de preto e branco, que aqui, removidos todos os vestígios da cor, brilha em toda a sua glória.
Uma opção estética que “casa” perfeitamente com o tom geral deste livro, muito próximo do policial hard boilled de que Azzarello é um mestre, pois como refere o espanhol Jordi Bernet, o criador de Torpedo e outro mestre do desenho a preto e branco: “o branco e preto é o ideal para as histórias realistas, sobretudo as do género noir. Gosto de acentuar o dramatismo nas sequências que assim o exijam e, brincando com o preto e branco, consigo obter efeitos muito mais directos do que com a cor. O preto e branco é bem mais simples e eficaz. É mais forte, directo, natural.”

A abrir o livro temos Cicatrizes, o contributo do argumentista de Chicago e do desenhador argentino para a série Batman Black & White. Uma história curta em que Batman enfrenta Victor Zsasz, um assassino psicopata e em que brilham os diálogos de Azzarello e a planificação dinâmica de Risso. Um pequeno aperitivo que abre o apetite do leitor para os dois pratos principais desta experiência “gourmet” centrada na arte de Eduardo Risso e na dimensão noir do universo do Cavaleiro das Trevas que o seu excepcional jogo de sombras vem realçar.

Segue-se Cidade Destroçada, história que, embora pensada inicialmente como uma novela gráfica solta, acabou por ser publicada nos números 600 a 625 da revista mensal Batman, onde teve a ingrata tarefa de suceder a Silêncio, a saga épica de Jeph Loeb e Jim Lee, que trouxe Batman de volta ao primeiro lugar dos tops de vendas. Seguindo o imortal conselho dos Monty Python, Azzarello e Risso optaram por algo completamente diferente do que tinha sido feito na história anterior. Em Cidade Destroçada não há Super-Homem, Oráculo, Robin, Asa Nocturna, Caçadora, Batmóvel, Batcaverna, o mordomo Alfred, Comissário Gordon ou a Mulher Gato, mas apenas Batman, um Batman solitário, investigando um crime numa cidade sombria, desprezada por Deus.
Por isso, em vez de uma história de super-heróis, temos um inquérito policial, na melhor tradição da literatura e do cinema noir, tantos nos cenários, como na narrativa, onde não podia faltar uma voz off desencantada e diálogos rápidos e certeiros como balas, protagonizado por um detective que se veste de morcego e que está demasiado obcecado com o caso que investiga para perceber o que realmente aconteceu. Azzarello e Risso, que já tinham fundido o policial negro com a espionagem e a teoria da conspiração no premiado 100 Bullets, recriam aqui na perfeição o ambiente de film noir, numa história de crime e castigo, em que nem sequer falta uma mulher fatal, tão bela quanto perigosa.
Eduardo Risso faz aqui uma síntese extremamente feliz dos Batmans de Frank Miller, criando um Cavaleiro das Trevas a meio caminho do Batman de O Regresso do Cavaleiro das Trevas e o Batman de David Mazzucchelli, em Ano Um, a que não faltam as sombras de Sin City, que a publicação a preto e branco acentua, sem que o seu traço perca personalidade.
Do mesmo modo, a sua sombria Gotham é uma verdadeira selva de betão, onde os adversários de Batman adquirem uma dimensão mais negra e realista. Veja-se o Croc, que em vez de um crocodilo humano, aparece como um chulo com uma doença de pele que o faz parecer um crocodilo; e, principalmente, o ventríloquo Arnold e o seu sinistro boneco, Mr. Scarface, um dos mais ridículos vilões da galeria de inimigos de Batman, a quem Azzarello dá uma dimensão simultaneamente trágica e inquietante. Do mesmo modo, a conversa entre Batman e o Joker no Asilo Arkham, traz-nos à memória o primeiro encontro da agente do FBI Clarice Sterling com o Dr. Hannibal Lecter no filme O Silêncio dos Inocentes.

A encerrar temos Noite da Vingança, uma história que explora com mestria uma realidade alternativa, na linha das da série Elseworlds, cujas potencialidades inesgotáveis os leitores portugueses já puderam descobrir em Batman: Outros Mundos, de Brian Augustyn e Mike Mignola e Super-Homem: Herança Vermelha, de Mark Millar e Dave Johnson.
No caso desta história, integrada na saga Flashpoint, cujo desfecho vai dar origem ao Universo DC da era Novos 52, foi Bruce Wayne quem morreu às mãos de Joe Chill e é Thomas Wayne quem vai assumir o manto e o capuz do Cavaleiro das Trevas para vingar a morte do filho. O resultado é um Batman bastante mais impiedoso, a quem Risso dá uma corporalidade que o aproxima do Batman de Miller em O Regresso do Cavaleiro das Trevas, que se movimenta numa Gotham em que a polícia foi privatizada, Harvey Dent nunca se transformou no Duas Caras e Thomas Wayne é proprietário do maior casino da cidade, gerido com a ajuda do Pinguim… E se a maioria dos vilões deste universo alternativo acabou por ser morto pelo Batman, o Joker mantém-se bem activo e mais sanguinário do que nunca.
O resultado é uma das melhores histórias do Batman da última década, que um twist, tão espectacular como inesperado, torna verdadeiramente inesquecível e que encerra em beleza esta viagem pelo universo detectivesco do Cavaleiro das Trevas. Um universo a que as sombras de Eduardo Risso dão uma dimensão tão sombria como espectacular.

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