quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Universo Marvel 17 - Hulk: Cinzento


UNIVERSO MARVEL VOL 17
Hulk: Cinzento
Argumento - Jeph Loeb
Desenhos - Tim Sale

TRÊS CORES: CINZENTO

Se dissessem a um cinéfilo mais tradicional, daqueles que lêem a revista Cahiers du Cinema, que há grandes pontos de contacto entre a trilogia das cores do cineasta polaco Krzysztof Kieslowski e os trabalhos de Jeph Loeb e Tim Sale para a Marvel, este teria certamente dificuldade em acreditar, mas a verdade é que, por mais improvável que pareça, há muita coisa que aproxima os filmes do cineasta polaco e as Banda Desenhadas dos dois americanos.
Se Azul, Branco e Vermelho, os três filmes que Kieslowski dedicou às cores da bandeira de França e aos ideais da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) são histórias de amor, marcadas pelo peso da memória, o mesmo se pode dizer de Homem-Aranha: Azul, Demolidor: Amarelo e Hulk: Cinzento, a trilogia das cores que Loeb e Sale dedicaram aos principais heróis da Marvel e que, depois da edição pela Devir dos dois livros anteriores, está finalmente disponível na íntegra em Portugal.
Revisitações nostálgicas dos primeiros tempos de actividade dos heróis, os três livros seguem uma estrutura muito semelhante, marcada pelos flash-backs. Tanto em Homem-Aranha: Azul, como em Demolidor: Amarelo, as histórias são narradas como cartas de amor a pessoas que já morreram (Peter Parker a Gwen Stacy em Homem-Aranha: Azul e Matt Murdock a Karen Page em Demolidor: Amarelo), mecanismo que permite o desencadear das recordações de um tempo que já passou, e que Loeb e Sale recuperam com o talento que se lhes reconhece.
Em Hulk: Cinzento, o que desencadeia os flash-backs, são as sessões de terapia entre Bruce Banner e Leonard “Doc” Samson, mas no centro dessas recordações está igualmente uma história de amor trágico, o triângulo amoroso entre Bruce Banner, Betty Ross e o Incrível Hulk, com a história mais centrada na relação impossível entre Betty e o Hulk, de uma forma que nos recorda o fascínio de King Kong por Ann Darrow (personagem interpretada de forma memorável pela actriz Fay Wray no filme original de Merian C. Cooper) que acaba por levar à sua perdição. Uma história centrada numa etapa inicial menos conhecida do percurso de Hulk, em que o gigante esmeralda era cinzento e a sua transformação era não consequência do aumento do stress, mas do cair da noite.
Mesmo que os outros heróis da Marvel com a excepção do Homem de Ferro, que não sai muito bem tratado desta história, brilhem pela ausência, Loeb não esquece os criadores que antes dele escreveram as aventuras do Hulk e em especial Peter David, responsável pelo argumento da revista do Hulk durante doze anos e que recuperou a versão cinzenta do Hulk, para além de ter criado também uma versão vermelha (cá temos outra trilogia das cores: cinzento, verde e vermelho...) A homenagem de Loeb a David é evidente no diálogo entre Banner e Samson sobre a mudança de cor do Hulk, com Banner a concluir o tema com a frase “mas estou a divagar” (“but I digress”, no original), que é precisamente o título da coluna de comentário sobre Banda Desenhada que Peter David Assinou na revista Comics Buyers Guide, de 1990 até 2013, data em que a revista cessou a publicação.
Nascido em 1956 em Ithaca, Nova Iorque, Sale passou a infância e a adolescência em Seattle, de onde saiu durante dois anos para frequentar a School of Visual Arts, a célebre escola nova-iorquina criada por Burne Hogarth, onde Will Eisner foi professor, para além de ter feito um workshop em Banda Desenhada com John Buscema. Mesmo que tenha regressado a Seattle sem ter concluído a sua licenciatura na S.V.A., o contacto com tão bons mestres deixou marcas e não admira que tenha acaba por decidir fazer carreira na Banda Desenhada. Uma carreira que se iniciou em 1983, com a série Mith Adventures da Warp Graphics, mas que só arrancaria realmente dois anos mais tarde ao conhecer o autor Matt Wagner e a editora Diana Schutz na Comic Con de San Diego. Encontro que lhe valeu o convite para colaborar na série Grendel, de Wagner, como desenhador, e que acabou por levar ao encontro mais importante da sua vida, com o escritor Jeph Loeb, que lhe foi apresentado por Wagner e Schutz.
Vindo do mundo do cinema, onde foi responsável pelo argumento de filmes como Teen Wolf e Commando e trabalhou na primeira série de ficção da HBO, The Hichhiker, foi o seu trabalho para um filme do Flash que nunca chegou a ser feito, que lhe abriu as portas da DC Comics, que detém os direitos da personagem e lhe permitiu iniciar uma carreira na Banda Desenhada, que não se limitou às colaborações com Sale. Uma carreira prolífica e frutuosa como argumentista de BD ligado às maiores editoras americanas, que Loeb tem sabido conciliar com a sua actividade de argumentista e produtor para televisão e que faz dele o homem ideal para o cada vez maior número de projectos em que Hollywood vai beber ao mundo da Banda Desenhada.
A série Chalengers of the Unkwon, o primeiro argumento de comics escrito por Loeb em 1991, foi naturalmente ilustrado por Sale e desde então a dupla colaborou em inúmeros projectos, com destaque para as sagas The Long Halloween e Dark Victory, que exploram o destino do Batman imediatamente após os acontecimentos do Year One, de Frank Miller e David Mazzucchelli e para Superman For All Seasons, história muita na linha da trilogia das cores da Marvel, de que é precursora e que foi assumida pelos criadores da série televisiva Smallville, onde Loeb também trabalhou, como uma das principais fontes de inspiração da série.
Mas as colaborações da dupla não se resumem à DC. Basta relembrar as mini-séries Homem-Aranha: Azul e Demolidor: Amarelo, os volumes anteriores da trilogia das cores, publicadas em Portugal pela Devir e da participação de Sale na série televisiva Heroes, de que Loeb foi produtor e argumentista e onde Sale, para além de conselheiro artístico, foi o responsável pelas pinturas de Isaac Mendez, um dos personagens da série, cujos poderes divinatórios se revelavam nos quadros que pintava.
E se Loeb e Sale já tinham estado em destaque nas duas colecções que a Levoir dedicou à DC, em que Loeb assinou o argumento dos últimos volumes da primeira e segunda série, com histórias que reúnem o Super-Homem e o Batman (A Rapariga de Krypton e Poder Absoluto) e Tim Sale foi responsável pela arte de Contos do Batman, em que ilustrava três histórias do Cavaleiro das Trevas, escritas por outros argumentistas que não Loeb, esta é a primeira vez que a dupla surge junta numa colecção da Levoir, assinando um dos seus melhores trabalhos conjuntos.
Um trabalho em que o traço de Sale revela uma plena maturidade, que ainda lhe faltava em Contos do Batman, e um apurado sentido narrativo, usando com grande efeito dramático, os grandes planos, as imagens de página inteira e as duplas páginas. Mas onde Sale mais brilha é na expressividade que consegue transmitir ao rosto do Hulk, usando com grande eficácia as sombras e os grandes planos, focando pormenores como os olhos e os dentes do Hulk, que se destacam no meio da escuridão. Veja-se, por exemplo a sequência que nos mostra a sua breve amizade com um coelho, ou o modo como o monstro se “derrete” na presença de Betty Ross. Betty, a mulher cuja memória está no centro da história, tal como aconteceu nos outros volumes da “trilogia das cores”, mas que na realidade acaba por ser mais um catalisador duma reflexão de contornos psicanalíticos sobre a relação difícil entre pais e filhos.
Pais geralmente ausentes, como nos casos de Bruce Banner e Rick Jones, dois órfãos com infâncias traumáticas, que estabelecem nesta história uma relação de pai e filho, ou mesmo de Betty Ross, que órfã de mãe tem no General Ross um pai ausente, para quem a obsessão em capturar o Hulk se sobrepõe tudo o resto, evocando uma personagem trágica da literatura, o capitão Ahab e a sua relação com Moby Dick, a baleia branca, que está no centro do famoso romance de Herman Melville.

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