sexta-feira, 25 de julho de 2014

Universo Marvel 3 - Homem-Aranha: A Última Caçada de Kraven


Tal como aconteceu com o 1º volume, no caso deste A Última Caçada de Kraven, também o editorial é da minha autoria. Daí que, em vez do texto que saiu no Público, tenha optado por publicar o editorial que escrevi para o livro, que desenvolve alguns aspectos que estão apenas aflorados no texto do jornal. Aqui está ele!

A SOMBRA DO CAÇADOR

Se pegássemos na vastíssima galeria de vilões que passaram pelas aventuras do Homem-Aranha e fizéssemos um Top Ten dos seus principais inimigos, dificilmente Kraven, o Caçador entraria nos três primeiros, mas a verdade é que uma história por ele protagonizada foi muito justamente considerada pelos visitantes do prestigiado site Comic Book Resources, como a melhor história do Homem-Aranha de todos os tempos.
E é precisamente essa história, A Última Caçada de Kraven, que publicamos neste volume. Uma história sombria, que reúne os talentos do escritor J. M. Dematteis e dos desenhadores Mike Zeck e Bob McLeod ao serviço de uma intriga perturbadora, em que Kraven, o Caçador, alveja o Homem-Aranha, enterra-o numa campa e assume temporariamente o seu lugar. Ou seja, uma história muito perturbadora (até pelo controverso final, que tanta polémica causou junto dos leitores) que mostra o lado mais negro do Homem-Aranha, que aqui não é o “simpático amigo da vizinhança” da série de animação.
Publicada originalmente entre Outubro e Novembro de 1987, esta história em 6 capítulos deveria ter sido publicada apenas na revista Spectacular Spider-Man, mas o editor Jim Salicrup lembrou-se de a espalhar pelas outras duas revistas do Homem-Aranha (Amazing Spider-Man e Web of Spider-Man) cujas páginas ocupou durante dois meses. Uma decisão ditada por motivos comerciais, pois obrigava os leitores a comprar as três revistas para conseguir ler a história, mas também por questões de lógica editorial, pois se Kraven mata o Homem-Aranha e ocupa o seu lugar, seria naturalmente confuso para os leitores que a vida de Peter Parker seguisse o seu percurso normal nos outros títulos, enquanto o herói estava debaixo de seis palmos de terra nas páginas de Spectacular Spider-Man
Se a premissa-base da história, em que um vilão mata o Homem-Aranha e passa a vestir o seu uniforme e a fazer o seu trabalho, tem, para os leitores actuais, grandes semelhanças com a história que Dan Slott criou para o Homem-Aranha Superior, trocando apenas Kraven pelo Dr. Octopus, o que mostra a influência do trabalho de De Matteis, quase trinta nos depois, a verdade é que A Última Caçada de Kraven não foi a primeira vez que o escritor tentou contar a história de um vilão que mata o herói e assume o seu lugar. Longe disso.
Reza a lenda que, já em meados da década de 80, De Matteis tinha proposto à Marvel uma mini-série doWonder Man, em que este era enterrade e acabava por conseguir abandonar a campa, mas o editor Tom DeFalco rejeitou a proposta, o que, anos mais tarde, levou o escritor a reformular a história e levá-la à DC, transformada numa aventura do Batman, em que o Joker mata o Batman, o que o deixa curado… Mais uma vez, a proposta seria rejeitada, neste caso, por ter alguns pontos de contacto com A Piada Mortal, que Alan Moore estava a preparar na altura. Só quando John Marc De Matteis reformulou outra vez o conceito e o levou à Marvel, transformado numa aventura do Homem-Aranha, é que a história foi finalmente aceite, com o sucesso que hoje se conhece.
Com um tom muito mais sombrio do que o habitual e referências literárias pouco habituais numa história de super-heróis, esta história é filha do seu tempo, reflectindo a alteração dos comics de super-heróis para um registo mais violento e realista, destinado a um público mais adulto, fazendo por isso mais sentido fora da continuidade normal do herói. O próprio De Matteis é aliás o primeiro a reconhece-lo, quando diz: “não estou a pensar para além destes seis números. Esta história não entra muito na continuidade dos outros livros. Na verdade, acho que se podiam pegar nestes seis capítulos e publicá-los separados, como uma mini-série, ou uma novela gráfica”.
Nascido em Nova Iorque em 1953, John Marc De Matteis queria ser músico rock, ou desenhador de BD, mas seria como argumentista que construiria uma carreira tão prolífica como bem-sucedida. Tendo começado a trabalhar para a DC em finais dos anos 70, De Matteis chegaria à Marvel em 1980, graças ao mítico editor Jim Shooter, que depois de alguns trabalhos menores, lhe confiou a escrita da revista do Capitão América, no que seria sua primeira colaboração com o desenhador Mike Zeck. Mas, mais do que as histórias de super-heróis, seriam os projectos mais artísticos que ajudaram a construir a fama de De Matteis. Mini-séries de luxo, ilustradas em cor directa, como Moonshadow, que escreveu para Jon J. Muth, ou Blood: A Tale, uma poética história de vampiros, pensada para o traço de Kent Williams.
Num registo bem diferente, mas igualmente memorável, estão as divertidas histórias da Liga da Justiça Internacional, que escreveu a meias com Keith Giffen, que contrapõem ao registo sombrio que dominava os comics da época, um humor absolutamente delirante. Humor que está ausente de A Última Caçada de Kraven, história que dá uma dimensão trágica e uma dignidade insuspeitada a um vilão menor do Homem-Aranha, Kraven, dá o merecido destaque a Ratus, uma espécie de ratazana humana, que Zeck e Matteis tinham criado durante a sua passagem comum pela revista do Capitão América e utiliza de forma eficaz o aspecto mais sombrio do novo fato que o Homem-Aranha ganhou durante as Guerras Secretas.
Muito bem construída em termos narrativos, com uma versão do famoso poema The Tyger, de William Blake (que Alan Moore já tinha utilizado no capítulo 5 da série Watchmen) em que o tigre (tyger) dá lugar à aranha (spyder), a funcionar quase como um mantra, pontuando os momentos mais importantes da narrativa, A Última Caçada de Kraven é o exemplo perfeito de uma boa história a que a cumplicidade e colaboração entre o argumentista e o desenhador, dá uma dimensão extra.
A parte gráfica foi assegurada por Mike Zeck, prolífico e talentoso desenhador que os leitores portugueses já conhecem dos dois volumes da saga Guerras Secretas, publicada na primeira colecção que a Levoir dedicou à Marvel e que aqui, apoiado na inspirada arte-final de Bob McLeod, assina um dos seus melhores trabalhos de sempre, marcado por um realismo sombrio, muito típico da segunda metade da década de 80, em que a influência de obras seminais como The Dark Knight Returns, de Frank Miller e Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, se fazia sentir fortemente.
O sucesso de A Última Caçada… foi tal que o próprio De Matteis voltaria pegar na história, novamente com Mike Zeck, em 1992, na novela gráfica Soul of the Hunter. E as coisas não ficaram por aqui, pois, regularmente, a relação entre Kraven, O Caçador e o Homem-Aranha volta ser abordada em mini-séries como Grim Hunt e Kraven First Hunt, em que descobrimos que Kraven deixou uma filha, que está pronta para acabar o trabalho do pai. Mas essas continuações, apesar de bem conseguidas, não fazem esquecer a história original. Uma história que, graças a esta colecção, os leitores nacionais vão poder ler finalmente em português de Portugal, numa edição que faz justiça à importância da obra.

2 comentários:

Hunter disse...

Salve, Lameiras!

Seu texto está muito bom, mas há uma coisa que precisa ser revista, Tom deFalco não pode ter vetado uma BD da Mulher Maravilha porque, ao longo da sua longa carreira, ele nunca foi editor na DC Comics (consta que está para se tornar, mas isso é outra história).

JML disse...

Tens razão! O que o Tom De Falco vetou, foi uma história do Wonder Man, (herói da Marvel) não da Wonder Woman. Já corrigi.
Abraço.