sábado, 19 de abril de 2014

Lá Fora - Charly 9, de Richard Guerineau e Jean Teulé


Publicado em França em finais do ano passado pela Delcourt, Charly 9 adapta à BD o romance de Jean Teulé sobre o Rei Carlos IX de França, que entrou para a História como o responsável pelo famoso massacre da noite de São Bartolomeu, em que vários milhares de protestantes huguenotes foram chacinados em Paris, por ordem da Coroa francesa, às mãos de católicos fervorosos. Uma personagem trágica que, perseguida pelos remorsos, vai morrer louco um ano depois, a suar sangue, com apenas 23 anos.

Este episódio sangrento da História de França, ocorrido na noite de 23 para 24 de Agosto de 1572, dia de São Bartolomeu, inspirou diversas obras de ficção, começando pelo livro A Raínha Margot, de Alexandre Dumas, (é a Dumas que se deve a propagação da lenda de que o Rei Carlos IX teria morrido a suar sangue, informação não referida na autópsia) adaptado ao cinema num filme de Patrice Cheréau, com Isabelle Adjani, particialmente filmado em Portugal, no Convento de Mafra.  Também George R. R. Martin foi buscar inspiração nesta tragédia real para a famosa cena do Casamento Vermelho, um dos momentos mais perturbadores da saga da Guerra dos Tronos. Mais recentemente, em 2011, o escritor francês Jean Teulé utilizou o mesmo ponto de partida para a biografia romanceada de Carlos IX, que esteve na base da BD de Richard Guérineau, que motiva este texto.
 Nomeado para os últimos  Prémios de Angoulême, Charly 9 acabou por não ganhar nada, o que me pareceu uma injustiça, pois trata-se de um excelente livro, dos melhores que li este ano, que explora de uma forma surpreendente as imensas potencialidades da linguagem da Banda Desenhada.
Tão mais surpreendente, pois os trabalhos anteriores de Guérineau não deixavam antever tamanha versatilidade e uma utilização tão criativa da herança clássica da BD franco-belga, que se adapta muito bem ao humor do texto original de Teulé, onde a comédia e a tragédia andam a par, bem evidente logo na cena inicial, em que a Raínha-mãe, Catarina de Médicis, e o resto da Corte manipulam o jovem Rei para ele dar a sua autorização para o massacre.
Nascido em 1969, Guérineau é conhecido sobretudo pelo seu trabalho como desenhador na série Le Chant des Stryges, escrita por Éric Corbeyran, tendo desenhado recentemente um álbum da série XIII Mystery, com argumento de Fabien Nury. Em ambos os casos, o seu trabalho mostrava um registo realista bastante clássico, que não deixava adivinhar  tamanha versatilidade gráfica.
Mas,muito  mais do que uma mera demonstração de virtuosismo vazia, Guérineau pretende, nas suas próprias palvras, "dar conta das mudanças de registo do texto de Teulé, através de rupturas gráficas, seguindo os capítulos, em tormo dos temas da morte, da loucura e do sangue".
E essas rupturas são bem evidentes, com o resgisto mais realista da cena inicial, em que o dramatismo é dado sobretudo pela cor e pela iluminação, a ser posteriormente substituído por cenas de alto contraste, quase monocromáticas, com um grau de estilização que não está longe do Sin City de Frank Miller, que transmitem bem a dimensão do massacre. Mas o mais curioso, são mesmo as homenagens inesperadas a Morris, o criador de Lucky Luke e, sobretudo a Peyo, com a descrição de uma caçada do Rei a ser mostrada como se se tratasse de uma história de Johan e Pirlouit.

Como referiu numa entrevista à revista Casemate:  "Com Charly 9, tinha vontade de mudar de época, de registo gráfico. Mas também de formato, com menos quadrados por prancha e, de tempos a tempos, com desenhos de página inteira. Perante a rotina de uma série como Le Vent des Stryges, estas histórias completas tornaram-se uma necessidade."
Face aos resultados conseguidos com este Charly 9, esperemos que Guérineau continue a intervalar os álbum de Le Chant des Stryges, série que já vai em 15 volumes, com as histórias em álbum que lhe permitem mudar de registo.
Os leitores agradecem!
E para terminar, deixo-vos com o belo trailler feito pela Editora para divulgar este livro.
Charly 9, de Teulé e Guerineau, Delcourt, 2013. à venda na Livraria Dr. Kartoon   

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