Novela Gráfica V – Vol. 11
O Número 73304-23-4153-6-96-8
Argumento e Desenhos –– Thomas Ott
Quinta-feira, 12 de Setembro
Por + 10,90€
Em 1833, o suíço Rodolphe Topfer, um dos pioneiros da Banda Desenhada, definiu assim, numa carta ao seu amigo Goethe, a originalidade do trabalho que acabava de criar: “este pequeno livro é de uma natureza mista. É composto por uma série de desenhos autografados a traço. Cada um desses desenhos é acompanhado de uma ou duas linhas de texto. Os desenhos sem o texto, teriam um significado obscuro; o texto, sem os desenhos, não significaria nada. O conjunto dos dois forma uma espécie de romance, tanto mais original porque não se assemelha mais a um romance do que a qualquer outra coisa”. É justamente nessa articulação e diálogo entre o texto e o desenho que reside a força e a originalidade da linguagem da BD.
Mais de 150 anos depois, Thomas Ott, um compatriota de Topfer, que além de autor de BD e ilustrador é também vocalista de uma banda rock e cineasta, demonstra que é possível contar histórias em BD recorrendo apenas ao desenho. O Número 73304-23-4153-6-96-8, décimo primeiro volume da colheita de 2019 da colecção Novela Gráfica, utiliza o registo policial como ponto de partida de uma história estética e narrativamente estimulante, contada apenas pelo recurso às imagens, sem uma única linha de diálogo.
Não que Ott tenha inventado a “BD muda” (chamemos-lhe assim por uma questão de comodidade), género com uma importante tradição que vai desde The City de Franz Masereel, até ao Arzach de Moebius, passando por títulos como Gon de Masashi Tanaka, ou a série Love, de Frédéric Brrémaud e Federico Bertolucci, entre (muitos) outros, mas usa-a com uma eficácia e elegância pouco habituais, muito por via da técnica do scratchboard, ou grattage, em que o desenho é raspado a branco numa folha previamente coberta de tinta-da-china, criando assim uma imagem em negativo, em que a luz rasga as sombras.
Nascido em 1996, em Berna, na Suiça, Ott estudou no Kunstgewerbeschule em Zurique, antes de começar a publicar em revistas independentes na segunda metade da década de 1980. Desde as suas primeiras histórias curtas, que o imaginário e a técnica que encontramos neste O Número 73304-23-4153-6-96-8, estão presentes. Como o próprio refere numa entrevista: “Desde criança, tenho pensamentos sombrios. No meu trabalho, preocupo-me com coisas que me deixam doente, que são muito sombrias. Quando vejo esboços que fiz aos dez anos, vejo as mesmas coisas: fantasmas e monstros. A temática do meu trabalho não mudou, apenas ficou mais específica.”
O mesmo pode ser dito em relação à técnica da grattage que se tornou a sua imagem de marca e que o próprio define “como estar num quarto preto e ir deixando lentamente entrar a luz”. Dando mais uma vez a palavra a Ott: “experimentei a técnica pela primeira vez quando era estudante de arte na Escola de Design de Zurique. Pensei em fazer apenas uma história usando essa técnica, mas a verdade é que a continuo a usar.”
O resultado desta obsessão são dezenas histórias sombrias, pequenos contos de crime e castigo, entre o terror e o policial, na linha da produção da mítica editora americana EC Comics, ambientados em cenários americanos típicos do filme noir. Pequenas pérolas de narrativa visual, publicadas em diversas revistas europeias e recolhidas posteriormente em livro. Livros como Tales of Error, Hellville, Tales from the Edge, ou Cinema Panopticum, publicados em editoras com o prestígio da L’Association, em França e da Fantagraphics nos Estados Unidos.
Primeira história de fôlego feita por Thomas Ott, O Número 73304-23-4153-6-96-8 é uma perturbadora narrativa circular que conta a história de um guarda da prisão que encontra um pequeno pedaço de papel com uma combinação de números, ao limpar a cela de um prisioneiro que foi condenado à morte e posteriormente executado. Como o guarda vive uma vida solitária e monótona, os números no papel despertam a sua curiosidade. Mas, tratando-se de uma história de Thomas Ott, esses números, que primeiro lhe vão garantir uma sorte inesperada, acabam por se revelar uma verdadeira maldição, conforme o leitor poderá ver/ler.
Publicado originalmente no jornal Público de 07/09/2019