quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Novela Gráfica V 11 - O número 73304-23-4153-6-96-8

AS SOMBRAS DE THOMAS OTT

Novela Gráfica V – Vol. 11
O Número 73304-23-4153-6-96-8
Argumento e Desenhos –– Thomas Ott
Quinta-feira, 12 de Setembro
Por + 10,90€
Em 1833, o suíço Rodolphe Topfer, um dos pioneiros da Banda Desenhada, definiu assim, numa carta ao seu amigo Goethe, a originalidade do trabalho que acabava de criar: “este pequeno livro é de uma natureza mista. É composto por uma série de desenhos autografados a traço. Cada um desses desenhos é acompanhado de uma ou duas linhas de texto. Os desenhos sem o texto, teriam um significado obscuro; o texto, sem os desenhos, não significaria nada. O conjunto dos dois forma uma espécie de romance, tanto mais original porque não se assemelha mais a um romance do que a qualquer outra coisa”. É justamente nessa articulação e diálogo entre o texto e o desenho que reside a força e a originalidade da linguagem da BD.
Mais de 150 anos depois, Thomas Ott, um compatriota de Topfer, que além de autor de BD e ilustrador é também vocalista de uma banda rock e cineasta, demonstra que é possível contar histórias em BD recorrendo apenas ao desenho. O Número 73304-23-4153-6-96-8, décimo primeiro volume da colheita de 2019 da colecção Novela Gráfica, utiliza o registo policial como ponto de partida de uma história estética e narrativamente estimulante, contada apenas pelo recurso às imagens, sem uma única linha de diálogo.
Não que Ott tenha inventado a “BD muda” (chamemos-lhe assim por uma questão de comodidade),  género com uma importante tradição que vai desde The City de Franz Masereel, até ao Arzach de Moebius, passando por títulos como Gon de Masashi Tanaka, ou a série Love, de Frédéric Brrémaud e Federico Bertolucci, entre (muitos) outros, mas usa-a com uma eficácia e elegância pouco habituais, muito por via da técnica do scratchboard, ou grattage, em que o desenho é raspado a branco numa folha previamente coberta de tinta-da-china, criando assim uma imagem em negativo, em que a luz rasga as sombras.
Nascido em 1996, em Berna, na Suiça, Ott estudou no Kunstgewerbeschule em Zurique, antes de começar a publicar em revistas independentes na segunda metade da década de 1980. Desde as suas primeiras histórias curtas, que o imaginário e a técnica que encontramos neste O Número 73304-23-4153-6-96-8, estão presentes. Como o próprio refere numa entrevista: “Desde criança, tenho pensamentos sombrios. No meu trabalho, preocupo-me com coisas que me deixam doente, que são muito sombrias. Quando vejo esboços que fiz aos dez anos, vejo as mesmas coisas: fantasmas e monstros. A temática do meu trabalho não mudou, apenas ficou mais específica.”
O mesmo pode ser dito em relação à técnica da grattage que se tornou a sua imagem de marca e que o próprio define “como estar num quarto preto e ir deixando lentamente entrar a luz”. Dando mais uma vez a palavra a Ott: “experimentei a técnica pela primeira vez quando era estudante de arte na Escola de Design de Zurique. Pensei em fazer apenas uma história usando essa técnica, mas a verdade é que a continuo a usar.”
O resultado desta obsessão são dezenas histórias sombrias, pequenos contos de crime e castigo, entre o terror e o policial, na linha da produção da mítica editora americana EC Comics, ambientados em cenários americanos típicos do filme noir. Pequenas pérolas de narrativa visual, publicadas em diversas revistas europeias e recolhidas posteriormente em livro. Livros como Tales of Error, Hellville, Tales from the Edge, ou Cinema Panopticum, publicados em editoras com o prestígio da L’Association, em França e da Fantagraphics nos Estados Unidos.
Primeira história de fôlego feita por Thomas Ott, O Número 73304-23-4153-6-96-8 é uma perturbadora narrativa circular que conta a história de um guarda da prisão que encontra um pequeno pedaço de papel com uma combinação de números, ao limpar a cela de um prisioneiro que foi condenado à morte e posteriormente executado. Como o guarda vive uma vida solitária e monótona, os números no papel despertam a sua curiosidade. Mas, tratando-se de uma história de Thomas Ott, esses números, que primeiro lhe vão garantir uma sorte inesperada, acabam por se revelar uma verdadeira maldição, conforme o leitor poderá ver/ler.
Publicado originalmente no jornal Público de 07/09/2019

domingo, 8 de setembro de 2019

Novela Gráfica V 10 - As serpentes Cegas




EXILADOS EM NOVA IORQUE

Novela Gráfica IV – Vol. 10
As Serpentes Cegas
Argumento – Felipe Hernández Cava
Desenhos – Bartolomé Segui
Quinta-feira, 29 de Agosto
Por + 10,90€
Mais   de 70 anos volvidos sobre o seu início, a Guerra Civil de Espanha deixou feridas ainda não completamente cicatrizadas. Se para muitos estrangeiros, de Hemingway a Hugo Pratt, aquela foi a “última guerra romântica”, para os espanhóis foi um momento de horror difícil de esquecer, até porque arrastaria consigo a longa ditadura franquista. Não admira, por isso, que seja um tema em destaque na Novela Gráfica espanhola contemporânea, como o provam títulos como Os Trilhos do Acaso e este As Serpentes Cegas. Vencedor do Prémio Nacional del Cómic em 2009, As Serpentes Cegas reúne o desenhador Bartolomé Segui - que os leitores do Público conhecem de Histórias do Bairro e da adaptação do romance Tatuagem, de Manuel Vazqués Montalbán, publicados em colecções anteriores - ao escritor Filipe Hernández Cava.

Formado em História de Arte e tendo trabalhado como guionista para televisão e como curador de exposições, Cava é um dos nomes principais da ascensão da BD de autor em Espanha após a morte de Franco, graças à sua participação no colectivo El Cubri, e ao seu trabalho como director editorial de dois títulos míticos da movida madrilena, as revistas Madriz e Médios Revueltos. Como argumentista, foi responsável por obras como a trilogia dedicada a Lope de Aguirre, desenhada por Enrique Breccia, Federico del Barrio e Ricard Castells, Las Memórias de Amorós, e O Artefacto Perverso, que era o único título seu editado em Portugal até agora.
Desenhado por Federico del Barrio, O Artefacto Perverso arrebatou os prémios de melhor álbum espanhol e de melhor argumento no Salão de Barcelona de 97 e foi a primeira reflexão importante de Cava sobre a Guerra Civil espanhola, embora a acção da história decorra no período imediatamente a seguir, no auge do Franquismo. Homenagem aos desenhadores da época de ouro do tebeo espanhol, e em especial a Vanó, o autor da série Roberto Alcazar yY Pedrín, O Artefacto Perverso era também uma interessante reflexão sobre a memória e uma arrojada experiência sobre o uso da BD como meta-linguagem, com o   traço versátil de del Barrio a adaptar-se de forma espantosa aos diferentes níveis da história, de um autor de BD que cala aquilo que vê e esconde aquilo que sente.
Menos experimental em termos estéticos, com um tratamento gráfico e um formato que remetem para a Banda Desenhada franco-belga clássica e um tratamento narrativo próximo do policial negro americano, com o uso da clássica narração na primeira pessoa, As Serpentes Cegas é o culminar das reflexões de Cava sobre a Guerra Civil espanhola, e aquele livro em que, continuando a ter a memória como tema dominante, a guerra está presente de forma mais directa. Obra que critica de forma dura os excessos cometidos em nome das ideologias, As Serpentes Cegas, reflecte a própria evolução de pensamento do seu autor, que afirmou numa entrevista : “antes acreditava que a verdade era sempre revolucionária, mas agora vejo que a verdade tem muitas zonas de sombra e eu gosto de me mover nessas zonas de sombra onde muito pouca gente se atreve a transitar.“Antes, acreditava que a verdade era sempre revolucionária, mas agora vejo que a verdade tem muitas zonas cinzentas, e a mim, dá-me gozo mover-me nessas zonas de sombra, pelas quais são poucos os que se atrevem a passar.”
História de vingança entre sobreviventes espanhóis da Guerra Civil, exilados em Nova Iorque, As Serpentes Cegas confirma Cava como um dos maiores argumentistas da No-vela Gráfica espanhola, mas também a importância de Bartolomé Segui como um dos grandes desenhadores da sua geração. O desenhador maiorquino declarou na entrevista para o catálogo da Exposição dedicada aos 10 anos do Prémio Nacional del Cómic que: “a nossa intenção não era fazer uma Banda Desenhada da Guerra Civil, mas sim aproveitar uma situação histórica concreta para fazer um comic que nos servia para falar de outras coisas: o fracasso das utopias, os “esquecidos” da História, etc...”.
Um objectivo cumprido com distinção, também muito por força da excelência do trabalho gráfico de Segui.
Publicado originalmente no jornal Público de 31/08/2019

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Novela Gráfica V 9 - Como uma Luva de Veludo Forjada em Ferro

O ESTRANHO MUNDO DE DANIEL CLOWES

Novela Gráfica V – Vol. 9
Como uma Luva de Veludo Forjada em Ferro
Argumento e Desenhos – Daniel Clowes
Quinta-feira, 29 de Agosto
Por + 10,90€
Depois de Marjane Satrapi e Schuiten e Peeters, eis mais um grande nome da BD mundial que regressa ao mercado editorial nacional através da colecção Novela Gráfica. Desta vez, o nome que confirma a excepcional qualidade desta colheita de 2019 é o norte-americano Daniel Clowes.
Nascido em Cicago em 1961, Clowes cresceu no meio de uma família ecléctica, que incluía um avô professor de História Medieval; um pai carpinteiro e construtor de móveis; um irmão hippie; um padrasto, dono de uma oficina de automóveis e corredor de stock cars, que morreu num acidente de carros quando Clowes tinha apenas cinco anos; e uma mãe, dona de casa, que se viu obrigada a tomar conta da oficina, após a morte do seu segundo marido.
Leitor de comics desde a infância, com gosto e jeito para o desenho, o jovem Daniel decidiu seguir uma carreira artística, tendo-se matriculado no Pratt Institute em Brooklyn, Nova Iorque, quando acabou o liceu em 1979. Foi no Pratt que econheceu e se fez amigo do desenhador Rick Altergott, com quem criou a pequena editora independente Look Mood Comics. É aí que Clowes se vai estrear como autor de BD, no nº 1 da revista Psycho Comics, em 1981. Os seus primeiros trabalhos profissionais para a revista Cracked ajudaram-no a ganhar experiência e a tornar-se conhecido, abrindo-lhe caminho para a editoras com outro peso, como a Fantagraphics, de Garry Groth e Kim Thompson, que se tornaria a editora de Clowes, depois deste enviar a Groth a primeira história que fez com o personagem Lloyd Llewellyn. Após a estreia no nº 13 da revista Love and Rockets, dos irmãos Hernandez, a Fantagraphics publicou entre 1986 e 1987 os seis números da revista Lloyd Llewellyn, a que se seguiu em 1988 The All-New Lloyd Llewellyn, a revista que encerra a história do personagem.
É no ano seguinte que a Fantagraphics começa a publicar o título fundamental da carreira de Clowes, a revista Eightball, que com diferente formatos e periodicidades, entre 1989 e 2004, serviu para pré-publicar em capítulos alguns dos mais importantes trabalhos do autor de Chicago, como Ghost World/Mundo Fantasma, a sua obra de estreia em Portugal, adaptada ao cinema em 2001 por Terry Zwigoff, e que lançou a carreira de uma Scarlett Johansson adolescente e este Como uma Luva... cujos dez capítulos saíram nos primeiros 10 números da Eightball, tendo sido posteriormente recolhidos em livro em 1993.
Se os títulos de Clowes têm sido frequentemente adaptados ao cinema, com o aconteceu com Ghost World, Art School Confidential e Wilson e deverá acontecer com Patience, a sua mais recente novela gráfica, isso não sucedeu com Como uma Luva de Veludo moldada em Ferro, cujo universo está bastante próximo do de cineastas como David Lynch e David Cronemberg. Mas, se isso não aconteceu até agora, é pouco provável que numa Hollywood cada vez mais infantilizada e refém do politicamente correcto, haja espaço para uma história tão perturbadora e surreal como a que Clowes criou. Uma história com personagens tão estranhos, como um bruxo que dá consultas na casa-de-banho de um cinema de filmes pornográficos; um homem com crustáceos enfiados nos globos oculares para limpar uma infecção; um culto religioso liderado por um aspirante a Charles Manson; um peludo cão (ou será cadela) sem quaisquer orifícios, que se alimenta de injecções de água; uma adolescente que fuma cachimbo; ou uma rapariga sem braços e pernas, fruto de uma noite de amor entre a mãe e uma criatura aquática de forma humana. Personagens surreais e delirantes, que Clay Loudermilk, o protagonista de Como uma Luva de Veludo Forjada em Ferro encontra na sua viagem em busca dos produtores de um filme pornográfico, em que lhe pareceu reconhecer a sua esposa, desaparecida alguns anos antes.
Com esta simples premissa como ponto de partida, Daniel Clowes pegou em dois ou três sonhos seus e da ex-mulher, para construir um road movie cerebral, que elimina qualquer fronteira entre o pesadelo e a realidade. Estranho, divertido e inquietante, Como uma Luva de Veludo moldada em Ferro é um dos mais importantes e perturbadores livros de um dos maiores nomes dos comics alternativos americanos.
Publicado originalmente no jornal Público de 24/08/2019

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

NovelaGráfica V 7 - Flex Mentallo


OS PRIMEIROS PASSOS DE UMA DUPLA GENIAL

Novela Gráfica V – Vol. 7 
Flex Mentallo
Argumento – Grant Morrison
Desenhos – Frank Quitely
Quinta-feira, 15 de Agosto
Por + 10,90€
Bem conhecidos dos leitores portugueses, graças a títulos como WE3 e All Star Superman, Grant Morrison e Frank Quitely estreiam-se na colecção Novela Gráfica, na próxima quinta-feira, 15 de Agosto, com aquela que foi a sua primeira colaboração, Flex Mentallo, um clássico da Vertigo.
Publicado originalmente como uma mini-série em quatro volumes em 1996 e republicado numa edição de luxo definitiva, recolorida por Peter Doherty, em 2012, que serve de base à versão portuguesa, Flex Mentallo é muito mais do que a primeira colaboração entre Morrison e Quitely. É um exemplo de metaficção e uma reflexão sobre a história e mitologia dos comics de super-heróis e a sua importância para o mundo real. Ou como o próprio criador de Flex Mentallo, que é uma das personagens da história (e um alter ego óbvio do autor) explica aos leitores na página 101: “Criámos os comics porque sabíamos, de alguma forma, sabíamos, que faltava algo e tentámos preencher esse vazio, com histórias acerca de deuses e de super-heróis.”
Flex Mentallo nasceu durante a passagem de Morrison pela série Doom Patrol, um título clássico, criado um 1963 (o mesmo ano em que a Marvel lançou os Fantastic Four) e relançado em 1987, com o subtítulo “Os Mais Estranhos Super-Heróis do Mundo”, o que convinha perfeitamente a Morrison, que tomou conta da série em 1989, no número 19 e criou a sua versão da Doom Patrol. Uma versão incontornável e definitiva, que está na base da actual série televisiva, exibida em Portugal no canal por cabo da HBO, onde Flex Mentallo marca presença, interpretado pelo actor Devan Chandler Long.

Mas se o “quebrar da quarta parede”, colocando os personagens em confronto com o seu criador, é algo que Morrison já tinha feito antes na série Animal Man, aqui vai mais longe, traçando uma verdadeira história dos comics de super-heróis, iniciando uma reflexão sobre o género que irá culminar no seu livro Supergods. Isso é bem visível nas capas originais da mini-série, com cada uma a evocar umas das quatro idades dos Comics. A Idade do Ouro, a Idade da Prata, a Idade Sombria - que resultou do sucesso de Watchmen e de O Regresso do Cavaleiro das Trevas, cuja capa é evocada no nº 3 da mini-série – e a Idade actual, que revisita de forma crítica e nostálgica as origens do género, reinventando-o para os leitores do século XXI.
E falta falar do excelente trabalho de Quitely, que se estreou aqui no mercado americano. Mas deixemos que seja o seu conterrâneo Grant Morrison a fazê-lo: “Graças às suas fantásticas habilidades de desenho, ele é capaz de criar coisas que antes só viviam nos meus sonhos, o que eu acho fascinante. Ele consegue captar no papel a sensação exacta dos meus sonhos. Ele abordou os personagens de uma forma que os fez parecerem bastante bizarros e bastante irrealistas, e acho que isso realmente se adequou ao livro.”
Publicado originalmente no jornal Público de 10/07/2019

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Novela Gráfica V 6 - Gorazde: Zona de Segurança

CERCADOS EM GORAZDE

Novela Gráfica V – Vol. 6 
Gorazde: Zona de Segurança
Argumento e Desenhos – Joe Sacco
Quinta-feira, 08 de Agosto
Por + 10,90€
O próximo volume da colecção Novela Gráfica assinala o regresso de Joe Sacco, um dos nomes maiores da reportagem de guerra em Banda Desenhada, género que praticamente inventou com Palestina, a sua novela gráfica de estreia, publicada em Portugal no início deste século XXI.
Nascido na Ilha de Malta, mas residente em Nova Iorque, Sacco é acima de tudo um repórter que escolheu a linguagem da BD para transmitir aquilo que viu. A meio caminho entre a novela (autobio)gráfica e a reportagem pura e dura, as suas obras têm como fio condutor o próprio Joe Sacco. Ele é o narrador participante, por vezes irónico, por vezes distante, mas cuja presença se apaga gradualmente face à força dramática dos testemunhos que relata. Sacco não chega a grandes conclusões, nem apresenta soluções, limita-se a relatar o que viu. E o que viu não é nada bonito. Um retrato sem concessões, mas cheio de humanidade, dos horrores da guerra e das vidas das gentes que procuram sobreviver e encontrar alguma aparência de normalidade no meio do caos.
No cerne deste livro estão as quatro viagens que o autor fez a Gorazde, entre o final de 1995 e o início de 1996. Um pequeno enclave muçulmano em território sérvio, Gorazde foi designada pela ONU como área segura durante a Guerra da Bósnia. Uma designação optimista, pois a cidade, cercada pelas forças sérvias da Bósnia, esteve à beira da destruição por três anos e meio, com o povo de Gorazde a sofrer severas privações para manter sua cidade, enquanto o restante do leste da Bósnia era brutalmente "purificado" de sua população não-sérvia pelas tropas de Slobodan Milosevic.
Se o conflito na ex-Jugoslávia que se seguiu à morte do Marechal Tito - cuja mão de ferro conseguiu manter artificialmente unida durante quase três décadas, a então República Federal Socialista da Jugoslávia, que acabaria por se dividir numa série de pequenas repúblicas, correspondentes às diferentes comunidades étnicas e religiosas, de croatas, sérvios e muçulmanos - tem sido bastante tratado na BD, esses relatos centraram-se sempre na cidade de Sarajevo. Basta pensar em Fax de Sarajevo, de Joe Kubert, publicado na colecção de 2016, ou em Sarajevo-Tango, de Hermann, ainda inédito em português. Um aspecto que vem tornar ainda mais pertinente o esforço de Sacco, que permitiu alertar o grande público para o drama vivido em Goradze.
Para além da força dos relatos e da profunda humanidade com que Sacco os transmite, o livro vive também do traço detalhado e expressionista do desenhador. Um estilo a meio caminho entre o realista e o caricatural, feito de milhares de pequenos traços, numa técnica que se aproxima da gravura e que se revela extremamente eficaz nas cenas de conjunto. Mas além de um traço muito trabalhado, Sacco é também senhor de uma boa técnica narrativa, patente na forma dinâmica como o texto se espalha pelas páginas, ou como a planificação se vai alterando de acordo com as necessidades de cada capítulo.
Desde que foi publicado pela primeira vez em 2000, Gorazde: Zona de Segurança ganhou o Eisner de Melhor Novela Gráfica em 2001 e foi reconhecido como um dos clássicos absolutos da novela gráfica de reportagem. Um clássico que, quase vinte anos depois, chega finalmente a Portugal.
Publicado originalmente no jornal Público de 03/08/2019