segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
Editoriais para a Colecção Heróis Marvel II - Parte 2: Surfista Prateado
SURFISTA PRATEADO: DE SUPER-HERÓI INCOMPREENDIDO A ÍCONE DA CULTURA POP
No filme Crimson Tide (Maré Vermelha, nos cinemas portugueses), realizado por Tony Scott em 1995, há uma cena em que o tenente do submarino, interpretado por Denzel Washington, tem que interromper uma violenta discussão entre dois marinheiros. O motivo dessa acesa discussão consistia em decidir qual o maior desenhador do Surfista Prateado. Se Jack Kirby, o seu criador, se o francês Moebius. Patrioticamente, Washington resolveu a discussão decretando que "qualquer fã de comics sabe que o melhor Surfista é o de Jack Kirby". Esta cena, escrita por Quentin Tarantino, para além da injustiça feita a John Buscema, o desenhador que mais páginas ilustrou com a personagem, é reveladora do impacto que Moebius conseguiu com a sua curta ligação à série, enquanto desenhador de Parábola, uma história em duas partes escrita por Stan Lee. Curiosamente, apesar de emblemática, esta não é a primeira referência importante ao Surfista Prateado no cinema. Anos antes, em 1983, no filme Breathless, o remake que o americano Jim McBride fez de À Bout de Souffle de Jean-Luc Godard, com Richard Gere a substituir Belmondo como protagonista, as revistas do Surfista Prateado que a personagem traz sempre consigo, funcionam quase como um guia espiritual, com as histórias do Surfista a reflectirem e comentarem a vida de Jesse, o anti-herói do filme.
Dois exemplos do apelo do Surfista Prateado fora do mundo da BD, a que podemos juntar o disco de Joe Satriani, Surfing With the Alien, que tem precisamente como ilustração de capa uma ilustração do Surfista, feita por John Byrne. Grande fã do Surfista Prateado, Satriani tem também noutro disco uma canção chamada Back to Shalla Bal, sendo Shalla Bal a mulher que o Surfista teve de deixar, quando aceitou acompanhar Galactus pelo Espaço sideral.
Apesar deste seu estatuto de ícone da cultura Pop, o Surfista Prateado nunca foi dos mais populares heróis da Marvel e pode dizer-se que surgiu quase por acidente. Visto pela primeira vez em 1966, nas páginas dos números 48 a 50 da revista Fantastic Four, numa história que ficou conhecida como a Trilogia de Galactus, o Surfista Prateado nasceu da iniciativa espontânea de Jack Kirby. O desenhador achou que uma criatura tão poderosa como Galactus, o devorador de mundos, necessitava de um arauto que o antecedesse, anunciando a sua chegada, ou fazendo um paralelo com a mitologia judaico-cristã, de um anjo que, à semelhança do anjo Gabriel que anuncia à Virgem Maria que esta vai ser mãe do filho de Deus, avisasse a humanidade da chegada iminente do Deus Galactus. Essa criatura de pele brilhante como prata, descobriu-a Stan Lee quando Kirby lhe passou as páginas desenhadas da saga de Galactus para ele escrever os diálogos, e o argumentista teve a surpresa de descobrir “um surfista de pele prateada cavalgando os céus em cima de uma veloz prancha”, prancha essa, de que Kirby se lembrou, por ser muito mais fácil e rápida de desenhar do que uma nave espacial...
Nascido como Norrin Radd, um jovem astrónomo do Planeta Zenn-La, o Surfista, para salvar o seu planeta da destruição, vai oferecer-se como arauto do poderoso Galactus, deixando para trás a mulher que ama, a bela Shalla Bal, para acompanhar o Devorador de Mundos na sua busca por planetas que lhe permitam saciar a sua necessidade inesgotável de energia. E se Galactus é uma figura que está para além do bem e do mal, já o Surfista está bastante mais próximo da Humanidade, através da sua dimensão trágica e do carácter filosófico das suas reflexões sobre a Humanidade pela qual se sacrificou, colocando-se ao lado do Quarteto Fantástico contra Galactus, que pretendia destruir o planeta Terra para aplacar uma fome insaciável. Tendo abdicado das estrelas para salvar os homens, qual Prometeu, o Surfista Prateado vai-se tornar uma das personagens favoritas de Stan Lee, que embora não a tenha criado, cedo percebeu como o Surfista se enquadrava no espírito de uma época, em que a música dos Beach Boys veio dar outra popularidade ao Surf.
Assim, em 1968, o Surfista Prateado passa a sulcar os céus na sua própria revista mensal, em histórias escritas por Stan Lee e desenhadas, não já pelo seu criador, Jack Kirby, mas pelo traço mais clássico de John Buscema, desenhador cujo trabalho podemos acompanhar neste volume em três episódios da revista mensal, em que o Surfista Prateado enfrenta o Homem-Aranha, participa numa revolução na América Latina e reencontra a sua amada Shalla Bal, para a voltar a perder logo de seguida… Ainda com arte de Buscema, este volume traz a novela gráfica Juízo Final, de 1988, uma curiosa experiência gráfica contada quase inteiramente com recurso a imagens de página inteira, com excepção de uma página dividida em três quadrados, cedência rapidamente compensada com uma dupla página. Para além desta pouca habitual escolha de paginação, mas que vem de encontro à tendência que Buscema tinha de usar imagens de grandes dimensões, para assim conseguir mais espaço em cada quadrado de modo a dar a cada vinheta a escala grandiosa que a saga cósmica do Surfista Prateado merece - o que o levou a optar por uma divisão preferencial da página em duas tiras na revista mensal do Surfista por oposição à planificação habitual em Kirby de três tiras por página - a forma como a história foi escrita, levando o “método Marvel” ao extremo, não deixa de ser curiosa. A história foi imaginada por Tom De Falco e pelo próprio John Buscema, com Stan Lee a limitar-se a escrever os diálogos, depois da história, que coloca o Surfista e Galactus lado a lado contra Mefisto, já estar toda desenhada.
Não obstante a qualidade e a importância do trabalho de John Buscema com o Surfista Prateado, o ponto alto deste volume é a colaboração, tão fugaz como conseguida, entre Stan Lee e Moebius, que permitiu a um dos poucos génios incontestados da BD franco-belga desenhar uma história de super-heróis. Tudo começou durante uma refeição que os dois autores partilharam, num Festival americano (embora as declarações de Stan Lee e Moebius não sejam coincidentes em relação ao ano, ao Festival, ou sequer se foi a um almoço ou a um jantar, em que esse encontro aconteceu). Mas, mais importante do que a data ou o local do encontro, foi o resultado, que confirma o génio de Jean Moebius Giraud, que soube jogar a fundo o jogo dos comics americanos, seguindo todas as suas regras e códigos, sem abdicar do seu universo pessoal. Veja-se o último quadrado da página 9, com a multidão a fugir, cheio de deliciosos pormenores, que são puro Moebius, ou a leveza etérea do seu Surfista, que parece esculpido num cristal de Aedena. Um ser de luz, que Moebius descreve assim: “o meu Surfista é imbuído de graça. Vejo-o como alguém elegante, altivo. Ele faz Tai-Chi, como eu!” Também o argumento de Stan Lee parece aqui em estado de graça, com uma interessante abordagem do fanatismo religioso, que deve ter calado fundo a Moebius, acabado de sair de uma experiência semelhante, depois de ter vivido em comunidade no Taiti com a seita de Jean-Paul Appel-Guerry, que tem grandes pontos de contacto com L. Ron Hubard, o criador da Cientologia. Perante este encontro feliz entre dois mestres da Banda Desenhada dos dois lados do Atlântico e as diferentes facetas do Surfista de John Buscema, que este volume dá a descobrir, caberá ao leitor decidir quem é o melhor desenhador do Surfista Prateado.
Os leitores mais atentos, poderão detectar algumas diferenças entre a versão impressa e o meu texto original, desde o título a alguns pormenores. Também por isso, pareceu-me interessante colocar as duas versões. Naturalmente, este é o meu último texto de 2012. Espero ver-vos por aqui em 2013, ano em que procurarei actualizar este blog com maior frequência. Bom Ano!
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8 comentários:
Muito bom texto João, mas faço apenas um pequeno reparo: o filme Crimson Tide é de 1995 e não de 85 (tinha pelo menos de ser anterior a 88, data em que foi publicado o Parable).
Obrigado pelo elogio e pela correcção, André! Foi uma gralha que escapou. Já corrigi no blog. No livro, é que já não vou a tempo...
Abraço
Muito bom!
Para quando nova colecção da levoir?
Obrigado!
Está-se a trabalhar nisso. Quando houver novidades (e autorização para as revelar) aviso aqui no blog.
bom trabalho!
as 5as tornaram-se num "guilty pleasure" e não me apetecia nada ter de regressar às capas duras americanas (e a preço menos convidativo! hehehe)
:)
Never vem ai Star Wars eu agradeço o descanso apesar de estar a penasa comprar alguns SWs no inicio e Quinzenal ja podes voltar ao vicio.
Acabei hoje esta edição e esta muito boa como quase todos os volumes da serie 2 que li até agora. :D
Não sou grande adepto de Star Wars em comics.
a minha lista devicios é basicamente :
1º autores especificos europeus
2º marvel & Dc
3º alguns independentes
Posso ser da minoria mas Star wars não me diz mto...
Se a alternativa é star wars, prefiro voltar a satisfazer o vicio em inglês. :P
Nem a Levoir nem o Público têm nada a ver com esta colecção do Star Wars, que é produzida e editada pela Planeta de Agostini.
Não te preocupes, que a colecção que a Levoir está a preparar para suceder aos Heróis Marvel, está mais dentro dos teus gostos :-)
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