É certo que podemos ter dificuldades em perceber a ordem pela qual a Asa está a publicar as aventuras de Corto Maltese, mas também não podemos deixar de reconhecer que o está a fazer a um bom ritmo, tendo publicado cinco volumes em pouco mais de um ano.
O mais recente desses volumes, “As Etiópicas”, afigurou-se como o pretexto ideal para voltar a falar da mais popular criação de Hugo Pratt, pois neste título, o criador de Corto Maltese apresenta-se em plena maturidade estética e literária, ao contrário de “Sob o Signo de Capricórnio”, em que Corto Maltese dava ainda os primeiros passos, ou de “Mu” em que os sinais de decadência, sobretudo gráfica, de Pratt são evidentes.
Com o marinheiro maltês a trocar os mares do Sul pelas areias do deserto, “As Etiópicas” relata a passagem de Corto pelo continente africano, durante o ano de 1918, num percurso que o leva do Iémen à Tanzânia, Passando pela Somália e pela Etiópia. Neste livro, Pratt mistura, tal como refere Marco Steiner no interessante prefácio, “cultura, natureza e aventura”, um trio de ingredientes temperados por um toque de fantástico, com que Pratt faz uma excelente receita. Das Suratas do Corão aos poemas de Rimbaud, passando por uma natureza desértica que funciona quase como uma personagem, aos tiroteios e violentos combates corpo-a-corpo, em que Corto mostra não ter medo de sujar as mãos, os três ingredientes estão lá, tal como estão as personagens carismáticas, como o feiticeiro abissínio Shamael, que volta a aparecer no livro “à l’Ouest de l’Edén” e, sobretudo, Cush, o guerreiro Danakil, cuja “química” com Corto é bem evidente.
Nestas quatro histórias, repletas de personagens inesquecíveis, encontramos vários momentos que mostram todo o talento narrativo de Pratt e a forma como joga com as convenções da Banda Desenhada, subvertendo-as. Veja-se como o poema de Rimbaud que fala de água dialoga de forma inesperada com as imagens áridas do deserto, na sequência inicial de “O Golpe de Misericórdia”, ou o efeito de zoom invertido que abre “Os Homens-Leopardo do Rufiji”, história que tem também uma belíssima sequência onírica, em que o fundo negro é usado com grande eficácia.
Mas estes são apenas pormenores, que não alteram o essencial, que é a grande qualidade deste punhado de histórias, bem desenhadas e melhor contadas, da passagem de Corto Maltese por África, num percurso que se cruza com o do próprio Hugo Pratt, que passou parte da sua juventude na Etiópia.
(“Corto Maltese: As Etiópicas”, de Hugo Pratt, Edições Asa, 112 pags, 24,50 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 10/09/2011
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