sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Mort Cinder, ou a morte que nunca deixa de o ser


Considerado muito justamente como o maior argumentista de Banda Desenhada de língua espanhola, Hector German Oesterheld, ao longo da sua carreira de quase três décadas (carreira extremamente produtiva, mas que foi tragicamente encurtada pela repressão da ditadura militar argentina) escreveu mais de cento e sessenta histórias para cinquenta desenhadores diferentes. Conciliando a quantidade com a qualidade na sua escrita, Oesterheld soube sempre encontrar desenhadores à altura do seu talento, conseguindo criar as parcerias adequadas a cada projecto.
De Solano Lopez em El Eternauta, passando por Arturo Del Castillo em Randall, até uma colaboração com Dino Battaglia em Capitan Caribe, foram inúmeros os desenhadores com quem Oesterheld colaborou, mas as suas parcerias mais importantes foram as que estabeleceu com Hugo Pratt e Alberto Breccia. Dois artistas que se vão encontrar em Buenos Aires, como professores na Escola Panamericana de Arte, instituição que vai formar artistas como José Muñoz, ou Eduardo Risso, entre (muitos) outros talentos argentinos e que foi criada em 1956, no mesmo ano em que foi abortado um golpe militar que pretendia recolocar Peron no poder.

Além da experiência de docência, os dois desenhadores atrás referidos vão igualmente partilhar os serviços de Oesterheld, chegando até Breccia a desenhar alguns episódios de Ernie Pike, uma das séries que ajudou a cimentar a fama de Pratt. Mas a primeira colaboração entre Alberto Breccia e Oesterheld deu-se em 1957, com Sherlock Time, um policial com toques de ficção científica e de fantástico, protagonizado por um detective que podia viajar no tempo (o nome, Sherlock Time, não engana), em que Breccia conseguiu criar um ambiente estranho e fantástico, sem no entanto abdicar de uma representação minuciosa e realista da cidade de Buenos Aires, onde se desenrola a intriga. Ou seja, algo que encontramos também em El Eternauta, em que os leitores argentinos descobriram um espaço quotidiano que bem conheciam, a cidade de Buenos Aires, retratada com rigor fotográfico por Solano Lopéz, perturbado por fenómenos extraordinários (no caso de El Eternauta, uma invasão extraterrestre).
José Muñoz , discípulo de Breccia, define assim o traço do mestre em Sherlock Time: “em cada toque de pincel, frio, preciso e rigoroso, encontramos o tempo fechado definitivo de cada desenho. Esse pincel frio, queima”.

Em 1962, ano em que um golpe militar pretende pôr fim à actividade da guerrilha argentina, iniciada três anos antes, começa a ser publicada na revista MISTERIX aquela que é considerada a obra-prima da dupla Breccia/Oesterheld: a série Mort Cinder. Mort Cinder, como o definiu o próprio Oesterheld: “é a morte que nunca deixa de o ser (...) um herói que morre e ressuscita, e no qual há angústia e tortura". Esta capacidade de morrer e viver de novo, permite à personagem atravessar diferentes épocas e locais da história, dos quais guarda uma memória latente. O filósofo argentino Óscar Masotta, compara Mort Cinder a o Fantasma, personagem criado por Lee Falk, salientado o que os separa: “na verdade, Mort Cinder, o “homem das mil e uma mortes”, é uma interessante inversão do esquema que rege a personagem de Lee Falk, o ‘‘fantasma que caminha”, o único herói de BD que morre... (no Fantasma, o personagem não morre, só morrem os homens que vestem o fato de Fantasma, que passa de gerações em, gerações; em Mort Cinder o homem é imortal, só morrem as suas múltiplas incarnações históricas).”

Pessoalmente, prefiro antes ver Mort Cinder, como a sequência lógica de outras personagens criadas anteriormente por Oesterheld, pois tal como Sherlock Time, ou o Juan Salvo de El Eternauta, Mort Cinder é mais um herói criado por Oesterheld que está liberto das leis do espaço e do tempo.
Se no caso de Juan Salvo e Sherlock Time essas viagens são feitas com recursos a máquinas sofisticadas, Mort Cinder viaja através da sua memória e das recordações que ela encerra. Recordações que são normalmente espoletadas por um qualquer objecto, cuja história está ligada a uma anterior vivência de Cinder. De modo a facilitar o reviver dessas experiências, Oesterheld criou como co-protagonista e narrador da série, a personagem de Ezra Winston, um antiquário amigo de Mort, que tem as feições do próprio Alberto Breccia, numa perturbante antevisão do que seria o rosto envelhecido do desenhador, algo que Breccia já tinha tentado antes com Eustáquio Mendez, personagem que aparece en El Ídolo, o segundo episódio de Sherlock Time, e cujas parecenças com Ezra Winston e com o próprio Breccia, são tão evidentes como inegáveis. Já o rosto de Mort Cinder, que Breccia demorou a encontrar, razão que obrigou Oesterheld a retardar a entrada em cena de Cinder no episódio inicial, Os Olhos de Chumbo, é inspirado em Horácio Lalia, um futebolista que mais tarde se tornaria também ele desenhador, tendo um dos seus álbuns, com adaptações de Edgar Alan Poe (O Gato Preto), sido publicado em Portugal pelas Edições Asa.

Demos outra vez a palavra a Oesterheld, desta vez partindo de um texto escrito em 1972, em que a personagem de Ezra Wiston se define na primeira pessoa e tenta explicar quem é Mort Cinder: “as coisas velhas ficam impregnadas da vida que as envolveu. Mas muito poucos conseguem captar as angústias, as emoções que ficaram aprisionadas, fósseis invisíveis, dentro das coisas velhas. Sou uma dessas raras pessoas, daí me ter tornado antiquário. Também sinto fascinação pelos templos, não importa a religião. Tantas preces, tanta dor, tanta esperança, dormem nas paredes de um templo. Também me fascinam as armas, carregadas para sempre com a morte que alguma vez deram. Morte talvez criminosa, talvez libertadora.
Mort Cinder consegue captar melhor, muito melhor do que eu ou qualquer outro, toda essa vida cristalizada para sempre. Mort Cinder é talvez essa vida que ficou incrustada na matéria inerte (nunca direi morte) das coisas. E digo talvez, porque nem eu, que vivi tanto tempo com ele, sei dizer quem é Mort Cinder”.

A partir deste esquema narrativo simples, mas engenhoso e cheio de potencialidades, a série foi sendo construída, de forma não muito planeada e quase mecânica, com o tema dos primeiros episódios a ser estruturado à medida que eram escritos, o que justifica alguns desequilíbrios. Mas Oesterheld não se preocupava em esconder o jogo, pois declarou numa célebre entrevista a Carlos Trillo e Guilhermo Saccomano, publicada em Portugal na revista Tintin, que: “as faltas e indefinições de Mort Cinder foram mais tarde elogiadas como uma descoberta acertada. Mas mentiria se afirmasse ter sido intencional. Na realidade, esse êxito, se assim se pode considerar, foi resultado das circunstâncias”.

Este carácter experimental está igualmente patente nos desenhos de Breccia, que, quando começou a desenhar a série, “não podia saber o que devia fazer, nem tão pouco comecei a ver o que os outros faziam”, optando por um estilo próprio, em que o jogo contrastante de luz e sombras e as figuras angulosas se adaptavam ao clima específico de cada história, ajudando a criar um ambiente de permanente tensão, com Breccia a variar as técnicas conforme as necessidades das histórias, como é o caso dos dois episódios passados na prisão, em que o trabalho de tramas de Breccia é absolutamente notável. Do mesmo modo, a iluminação que Breccia dá às pranchas, digna do melhor cinema expressionista, vai tornando-se cada vez mais dramática ao longo da série, fruto do próprio estado de espírito do desenhador, cuja primeira mulher estava à morte. Para esse efeito dramático contribui, e muito, a troca do “pincel frio que queima”, usado em Sherlock Time, pela lamina que rasga a pele e as sombras, mais exactamente, laminas de barbear utilizadas como espátulas, aspecto em que Breccia foi pioneiro, tal como o seu jogo de sombras em negativo e o preto e branco de alto contraste, influenciou vários desenhadores, de José Muñoz, a Frank Miller, em Sin City.

Em 1964, após terem sido publicadas mais de duzentas pranchas, correspondentes a dez episódios, em que Mort Cinder nos guiou da construção da Torre de Babel até às trincheiras da I Guerra Mundial, passando pela Batalha das Termópilas, em que 300 espartanos retardaram o avanço do poderoso exército de Xerxes (episódio que, décadas depois, seria novamente adaptado à BD por Frank Miller, em 300) a série chega ao fim. O episódio dedicado à batalha das Termópilas é mesmo o último e nele, Mort Cinder, único sobrevivente das tropas espartanas, é deixado ir em paz pelo próprio Xerxes que, impressionado com a sua coragem lhe diz: “vai-te homem de Esparta... tu és mais Rei do que eu, és rei de ti próprio...” Um último diálogo, que poderia funcionar como epitáfio do próprio Oesterheld, “desaparecido” em 1977 e que, provavelmente durante o ano de 1978, terá pago com a vida o ter querido ser Rei de si próprio, numa terra onde os militares não tinham a nobreza de espírito do Rei Xerxes...
O grande investimento artístico e humano dos seus autores foi recompensado, pois não só Mort Cinder é tida como uma das séries mais importantes da BD mundial, como o próprio Breccia a considerava, muito justamente, como a melhor coisa que fizera.
Em Portugal, onde a obra de Oesterheld tem sido insuficientemente divulgada, Mort Cinder é honrosa excepção. O episódio O Vitral, foi publicado em 1976 no jornal Lobo Mau, numa época em que, na Argentina, Oesterheld, ligado à guerrilha montonera, já tinha entrado na clandestinidade. O resto da série está parcialmente editada em álbum pelas Edições Asa, que lançou apenas Os Olhos de Chumbo, o primeiro dos dois volumes da magnífica edição da Vertige Graphic, que publica pela primeira vez no seu formato original, todos os episódios desta magnífica série, ponto mais alto da frutuosa colaboração entre Alberto Breccia e Hector German Oesterheld.
Versão integral de um texto publicado (com alguns cortes, por questões de espaço) no catálogo da Exposição Oesterheld, o Homem como Unidade de Medida, organizada pelo Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem da Amadora, por ocasião do Amadora BD 2009

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