quinta-feira, 5 de novembro de 2015

BILLIE HOLIDAY - A vida da Diva do Jazz numa Novela gráfica de Muñoz e Sampayo


Grande fã de Muñoz e Sampayo, foi com prazer que soube que a Levoir ia editar em Portugal a biografia de Bille Holliday que eles fizeram. Para além de traduzir o livro e fazer as biografias dos autores, tive também oportunidade de escrever este texto para o Público, que aqui apresento na sua versão integral. As citações de José Muñoz foram extraídas de uma entrevista que lhe fiz em 2001 e que foi publicada anos depois na revista Quadrado

VIDA DE BILLIE HOLIDAY EVOCADA 
EM NOVELA GRÁFICA DE MUÑOZ E SAMPAYO

No ano em que se comemora o centenário do seu nascimento, o Público e a Levoir homenageiam Billie Holiday, a mítica diva do jazz, publicando pela primeira vez em Portugal a novela gráfica que Muñoz e Sampayo lhe dedicaram.
Vencedor do Grande Prémio de Angoulême em 2007, José Muñoz nasceu em 1942, em Buenos Aires e estudou na Escola Pan-Americana de Artes, onde foi aluno de Alberto Breccia e conheceu Hugo Pratt, os autores que mais influenciaram o seu estilo. Aos 18 anos, começou a trabalhar como assistente de Solano Lopez, em El Eternauta (a obra-prima da BD argentina, escrita por Oesterheld) e pouco depois substituiu Hugo Pratt como desenhador de outra série mítica criada por Oesterheld, Ernie Pike. Carlos Sampayo nasceu em 1943, também em Buenos Aires. Definindo-se como “um boxeur amador até um dia em que ficou K.O. por se ter distraído a olhar para um cartaz publicitário”, Sampayo trabalhou inicialmente em publicidade, até se dedicar a tempo inteiro à BD.
Nomes maiores da BD argentina, os dois autores construíram a sua carreira conjunta na Europa, onde se exilaram em inícios da década de 70, para fugir à ditadura militar argentina, e onde ainda residem.
Curiosamente, essa colaboração nasceu num aeroporto e amadureceu noutro. Tudo começou em 1974, no aeroporto de Londres, quando Oscar Zarate (desenhador argentino que trabalhou com Alan Moore) aconselhou Muñoz, de partida para Espanha, a contactar com Sampayo, um escritor argentino então a viver perto de Barcelona, que Muñoz tinha conhecido três anos antes, curiosamente noutro aeroporto, aquando da partida de Zarate para Inglaterra.
Da parceria entre esses dois argentinos exilados, nasceu em 1975 um herói, Alack Sinner, o detective americano que valeria aos seus criadores dois Prémios de Angoulême, em 1978 e 1983. Como refere Muñoz: "A nossa formação cultural, feita na Argentina, durante os anos 50 e 60, foi extremamente rica e variada, pois tínhamos acesso à maioria do material europeu e norte-americano... Tivemos assim a sorte de poder apreciar o que de bom vinha dos Estados Unidos. E uma dessas coisas boas era o policial "negro" americano, até porque a situação política na Argentina tinha infelizmente tudo a ver com a realidade do policial negro, era mesmo uma autêntica novela de terror!
Foi desse caldo de cultivo que nasceu Alack  Sinner, cujo nome significa “ai de mim, pecador”. A reflexão destas nossas confusões internas, o desejo desesperado de manter uma vida digna, fora do nosso país, um país que matava os nossos irmãos, tudo isso foi transformado e sublimado em Alack Sinner.
Uma série que é composta de ciclos distintos. Numa primeira fase, seguimos as regras do policial negro de forma rigorosa, mas à medida que o trabalho nos educou e fomos crescendo como autores, Alack Sinner tornou-se a síntese principal da nossa dupla criativa. Dia após dia. “
Para além das histórias de Alack Sinner, personagem que atravessa a obra da dupla, estando presente também em Billie Holiday, a música é um elemento fundamental na obra de Muñoz e Sampayo que, além desta biografia de Billie Holiday, dedicaram mais recentemente um livro à vida de Carlos Gardel, nome maior do tango.
A importância da música na obra da dupla é algo perfeitamente assumido, como se percebe pelas palavras de Muñoz: “Alack Sinner é uma metáfora musical do tango e do jazz. Fizemos também uma história sobre Charlie Mingus, um músico que eu conhecia mal, pois fiquei-me mais pelo jazz até aos anos 50, mas que Carlos, que é o grande especialista de jazz, adorava. Até nesse aspecto, em termos musicais, nos completamos... Quanto a Billie Holliday, o caso foi diferente. Ambos temos um profundo amor e admiração pelo trabalho desta mulher, e quanto Lucas Taletti, um italiano que vive em Paris e era nosso agente na altura, nos propôs fazermos uma BD sobre Billie, entrámos quase em órbita!
Mas Billie Holliday também é uma emanação de Alack Sinner. Tudo isto são como emanações, mas que não são apenas bairros periféricos de Alack Sinner, mas uma consequência da seriedade tragicómica da nossa aposta de fazer algo sério através de uma linguagem, a BD, que nem sempre tem sido usada com esse objectivo.”
Prova que a arte não conhece fronteiras, este trabalho de dois argentinos, sobre uma cantora negra americana, publicado originalmente em Itália, em 1990, na revista Corto Maltese e em livro em França, chega finalmente a Portugal, na versão especial comemorativa do centenário do nascimento da cantora.
Que melhor testemunho poderia haver da dimensão global de uma obra, em que Nova Iorque é uma Buenos Aires traduzida e Billie Holiday e Carlos Gardel ganham vida no desenho a preto e branco de Muñoz? Mais uma vez, Muñoz tem a resposta: “neste mundo a meio caminho entre o sonho e a vigília que são os nossos trabalhos, tudo se harmoniza. A música de Billie Holliday podia perfeitamente pertencer a um ambiente de tango. Entre as grandes cantoras de tango e as cantoras de jazz, como Billie Holliday há uma familiaridade. A mesma profundidade de um coração desgarrado, mas vivo, que canta.”
Versão integral do texto publicado no jornal Público de 30/10/2015 

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