segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Oesterheld e o fantástico


OESTERHELD E O FANTÁSTICO

Este post é dedicado à memória de Elsa Sanchez Oesterheld, que no dia 22 de Junho de 2015 se juntou ao marido e às filhas, encontrando finalmente a paz.

A recente publicação em Portugal, integrada na colecção Novela Gráfica, de Mort Cinder, obra maior de Alberto Breccia e Hector Oesterheld, surge como o pretexto ideal para dar a conhecer aos leitores da revista BANG! um pouco mais sobre a vida e obra do maior argumentista de língua espanhola e sobre a forma como o fantástico, seja através do terror ou da ficção científica, está bem presente nessa obra.
Nascido em Buenos aires em 1919, de uma família onde se cruzavam as ascendências basca e alemã, Hector German Oesterheld (HGO) formou-se em geologia, mas isso não diminuiu o seu interesse pela leitura e pela escrita. Aos 23 anos, quando já estava a trabalhar numa empresa de exploração petrolífera, publica o seu primeiro conto no suplemento literário dominical do jornal LA PRENSA, jornal em que começou a trabalhar como revisor, até ir trabalhar no laboratório de mineração do Banco de Crédito Industrial. Nos anos seguintes, vai tentando conciliar a escrita com a actividade de geólogo, até acabar por se dedicar inteiramente à escrita, em meados da década de 40, escrevendo sobretudo livros de divulgação e contos infantis.
Em 1951, o dono da Editora Abril propôs-lhe escrever para Banda Desenhada, género que Oesterheld não lia nem apreciava especialmente, mas onde tentou fazer “o melhor que sabia”, com os resultados que conhecemos… O primeiro argumento que escreveu foi para Ray Kitt, uma série policial ilustrada por Hugo Pratt, o criador de Corto Maltese, então radicado na Argentina. Embora as colaborações com Pratt, que disse “aprendi muito com Oesterheld. Do ponto de vista da técnica narrativa, aprendi mais do que com qualquer outro” sejam em histórias realistas, como Sgt Kirk, um western, ou Ernie Pike, uma história de guerra, rapidamente o seu nome aparece associado à ficção científica, estando ligado, como editor, tradutor e autor, à revista MAS ALLÁ, publicação pioneira da FC na Argentina, que deu a descobrir naquele país autores como Ray Bradbury, ou Isac Asimov, em traduções de Oesterheld.
Para a revista DRAGON BLANCO, lançada em 1955, HGO escreve cinco séries, duas quais, Chas Erikson e Lobo Nuncan, são de FC, tal como acontece com Uma Uma, história ilustrada por Solano Lopez, que escreve para a revista RAYO ROJO, sobre uma ilha do Pacífico invadida por extraterrestres. O tema desta sua primeira colaboração com Solano López é desenvolvido em outros trabalhos que farão juntos dois anos depois, a série Rolo, el Marciano Adoptivo e, sobretudo, El Eternauta, considerada como a mais importante BD argentina de todos os tempos, de tal maneira que o dia 4 de Setembro, em que chegou às bancas a revista HORA CERO com o primeiro capítulo de El Eternauta, é considerado oficialmente desde 2005 como o Dia Nacional da BD (Historieta) na Argentina.
Publicada ao longo de dois anos na revista HORA CERO SEMANAL entre 1957 e 1959, El Eternauta é o relato da invasão da cidade de Buenos Aires por forças extraterrestres, relato que é feito por um dos sobreviventes, Juan Salvo, a um escritor de BD que, embora nunca seja nomeado, tudo indica que seja o próprio autor, pois é a casa onde vivia o escritor que Solano López desenha aparecendo assim Oesterheld como personagem da sua própria história, num exercício de meta-ficção.
Tudo começa com a queda de uma estranha neve fluorescente que mata ao contacto com a pele, neve essa que abre o caminho para uma invasão extraterrestre comandada pelos Ellos, seres que nunca veremos, e executada por tropas de assalto compostas por seres de outros planetas, como os Cascarudos, animais de grande porte parecidos com escaravelhos gigantes, e os Manos, semelhantes aos humanos, com a excepção das mãos com imensos dedos, povos conquistados pelos Ellos e usados como carne para canhão na invasão ao planeta Terra.
Depois de uma série de peripécias, em torno do combate desigual dos sobreviventes contra os invasores, Juan Salvo entra acidentalmente numa máquina dos invasores que o transporta para outras dimensões, para longe da sua família, transformando-o “num peregrino através dos séculos, um viajante na eternidade, um ETERNAUTA”.
Uma dessas muitas viagens pelo espaço e pelo tempo trá-lo finalmente de volta a Buenos Aires, em 1959, onde encontra um escritor a quem conta o que se irá passar anos depois (a acção da história decorre em 1963) para que este, através da Banda Desenhada, avise os leitores para o que está para acontecer.
Se as histórias de invasões extraterrestres não eram propriamente novidade, muito menos na obra de HGO, o que já era novidade, era uma invasão que tivesse como cenário a cidade de Buenos Aires, onde viviam a maioria dos leitores de HORA CERO, que reconheciam com facilidade os cenários desenhados com rigor fotográfico por Solano Lopez e se identificavam com Juan Salvo e os seus amigos, grupo heterogéneo na sua composição social que representava os vários extractos da sociedade argentina e que é o verdadeiro herói da história, como salienta Oesterheld: “O verdadeiro herói de El Eternauta é um herói colectivo, um grupo de homens. Isso reflecte, embora sem intenção prévia, as minhas convicções: o único herói válido é o herói “em grupo”, nunca o herói individual, o herói solitário”.
Para além da dimensão espectacular da aventura, e de algumas cenas fortíssimas, como a sequência inicial com a neve mortal, ou a forma como é gerida a entrada em cena dos Gurbos, de quem vemos primeiro as pegadas e depois o rasto de destruição que causam, antes de os vermos finalmente, esta história de um grupo de indivíduos normais colocados numa situação excepcional, tem momentos de pura poesia, como é o caso da magnífica cena em que um dos Manos (seres pacíficos, obrigados a combater pelos Ellos, que lhes infiltraram uma “glândula de terror”, que liberta uma substância que os mata caso sintam medo) se despede da vida cantando uma estranha canção.
Ainda El Eternauta estava em publicação quando o escritor cria para a revista EL TONY, da editorial Columba, a série Star Kenton, uma saga espacial, ilustrada por Walter Casadei e protagonizada por um cientista e piloto que, depois de salvar a terra de uma invasão extraterrestre, se assume como um vigilante espacial
Em 1959, ao mesmo tempo que continua a desenvolver outras séries, de diversos géneros, com diferentes desenhadores, HGO inicia a sua colaboração com Alberto Breccia em Sherlock Time, uma história policial com toques de ficção científica e de fantástico, protagonizado por um detective que podia viajar no tempo, história que serviu ponto de partida para Mort Cinder, série igualmente protagonizada por um personagem com capacidade de viajar no tempo, mas neste caso, através das memórias que a descoberta de um objecto lhe trazem de vidas passadas.
Série em que o fantástico e o terror convivem com uma visão profundamente humana da história, Mort Cinder é um marco na história da BD mundial, muito por força do extraordinário trabalho gráfico de Breccia, cuja importância Oesterheld reconhece ao referir: “Há sofrimento, tormento em Mort Cinder. Isso reflecte talvez o meu estado de alma particular, mas o essencial dessa atmosfera vem de Breccia. Há uma quarta dimensão no seu desenho, uma capacidade de sugestão que o distingue da maioria dos desenhadores que conheço. É essa força constantemente aplicada, que dá ao seu desenho todo o seu valor e inflama a imaginação dos argumentistas.”
Entre as dezenas de séries que o escritor cria nos anos seguintes, ressaltam dois super-heróis, Bird Man e Future Man. Um advogado americano que decide combater o crime depois de encontrar um punhal que lhe dá superpoderes e um cientista e explorador nascido no século XXV que consegue viajar no tempo, que vão ter direito cada um à sua própria revista.
Em 1969, HGO vai recuperar, agora com arte de Alberto Breccia, El Eternauta. Publicada agora na GENTE, uma revista semanal de informação, esta ficção apocalíptica protagonizada por um indivíduo que, tal como Sherlock Time e Mort Cinder, não está sujeito às leis do tempo, podendo, ao atravessar um portal dimensional, aparecer num outro local ou época, não teve a aceitação que merecia e os autores esperavam.
Talvez devido às mudanças na própria história (nesta nova versão, em vez de uma invasão global, as grandes potências fazem um acordo com os invasores extraterrestres, entregando-lhes a América do Sul) algo perturbador para as consciências ociosas dos leitores da revista GENTE, ou ao grafismo de Breccia, a milhas do estilo mais convencional de Solano López e demasiado abstracto para o gosto do público, que tem dificuldade em reconhecer a cidade de Buenos Aires nas colagens de Breccia, choveram as cartas de protesto e o editor decidiu acabar com a série, pedindo desculpas aos leitores. Isto permite perceber o final circular da história (a melhor maneira que Oesterheld encontrou de concluir rapidamente a narrativa) e o desequilíbrio dos capítulos finais, em que o escritor condensou em quatro ou cinco páginas, repletas de texto, uma acção inicialmente prevista para ocupar quinze ou vinte páginas.
De qualquer modo, e apesar deste final inglório, estamos perante um trabalho graficamente inovador, em que Breccia, aqui claramente seduzido pela arte contemporânea, visível nas inúmeras referências à "Op Art" e à "Pop Art", começava a utilizar a técnica da colagem, abrindo caminho para o que iria ser uma característica marcante da sua produção na década seguinte.
Conforme refere HGO: “A versão de El Eternauta publicada na GENTE foi um fracasso. E fracassou porque não era para essa revista. Eu era outro, não podia escrever o mesmo. E Breccia, por seu lado, também era outro. Este Eternauta tinha as suas virtudes e também os seus defeitos. Por um lado, a mensagem literária, por outro, a mensagem gráfica. Quanto à mensagem literária, apercebi-me, muito mais tarde, que me tinham suprimido parágrafos inteiros. (…) Em relação à parte gráfica, o verdadeiro final foi quando chamaram o Breccia e lhe explicaram que havia um desfasamento com o que o público queria e lhe pediram que suavizasse a coisa. Avisaram-no mais duas ou três vezes, mas ele nunca fez caso. Não aceitou fazer modificações e então decidiram acabar com El Eternauta”.
Se o escritor iria voltar ao tema da invasão extraterrestre logo no ano seguinte com La Guerra de los Antartes, uma história publicada inicialmente em 1970 na revista 2001, com desenhos de Léon Napoo, que teve direito a uma nova versão em 1974, com desenhos de Gustavo Trigo, no jornal NOTICIAS, El Eternauta regressaria numa segunda aventura desenhada por Solano López, cuja publicação se iniciou em 1976, na revista SKORPIO. Escrita por HGO então já na clandestinidade, devido à sua ligação activa ao movimento Montonero, a história terminou a sua publicação numa altura em que Oesterheld já tinha “desaparecido” às mãos da ditadura militar argentina e provavelmente já nem estaria vivo, tal como as suas quatro filhas, que também eram militantes activas da guerrilha montonera.
Nesta história, passada num futuro próximo, em que a invasão extraterrestre tinha sido bem-sucedida, Oesterheld não se limita a escutar as aventuras de Juan Salvo, o Eternauta, mas participa activamente nelas como membro da resistência, pois o escritor que nos episódios anteriores não tinha nome, surge agora identificado como German, o nome do meio de HGO e também o nome que ele usava enquanto militante montonero na clandestinidade. Ou seja, o personagem, tal como o seu criador, abandona uma postura passiva e assume uma opção clara pela acção directa.
Apesar do traço de Solano López mostrar uma grande evolução, o carácter marcadamente panfletário da história, faz com que esta continuação seja bastante menos interessante. Juan Salvo, em vez de um homem normal, preocupado em recuperar a sua família, surge aqui como um líder revolucionário implacável, disposto a tudo sacrificar à sua causa.
Uma mudança radical no comportamento do herói que Solano López não aceitou bem, pondo mesmo em causa que tivesse sido o próprio Oesterheld a escrever toda a história, sugerindo que o escritor poderá ter utilizado a história para passar mensagens cifradas à guerrilha montonera, no meio dos diálogos da história. De qualquer modo, o caracter panfletário desta continuação, é coerente com a forma como a obra de HGO reflecte as suas opções políticas e ideológicas. Conforme refere Carlos Trillo: “não é preciso ser um grande caçador de metáforas para associar os Ellos com os militares que tomaram o poder”. Impressão que o facto das três versões já referidas do Eternauta terem sido publicadas na sequência de golpes de estado militares, só vem reforçar.
Juan Salvo, o Eternauta, viveria ainda outras aventuras pelas mãos de Solano López. Já a memória de Oesterheld, tal como Juan Salvo, viaja para a eternidade através de obras como Mort Cinder ou El Eternauta. 
Publicado originalmente no nº 18 da revista BANG!, de Junho de 2015

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