Conforme prometido, aqui vai a reportagem possível da edição 41 do Festival Internacional de BD de Angoulême, a mais importante iniciativa europeia do género, que este ano premiou Bill Waterson, o genial criador de Calvin e Hobbes, com o Grande Prémio do Festival, vencendo assim uma corrida a três com Alan Moore e Katshuiro Otomo.
Independentemente da justiça desta distinção para um autor com uma obra relativamente curta (as tiras de Calvin duraram apenas 10 anos, entre 1985 e 1995), mas de qualidade indiscutível, a verdade é que a atribuição do Grande Prémio de Angoulême esteve envolta em polémica, face à alteração do método de eleição, com a decisão final a caber já não aos anteriores vencedores do Grande Prémio, mas a uma vocação global feita pela Internet, onde puderam votar todos os profissionais de BD de qualquer nacionalidade, desde que tivessem trabalhos publicados em França. Além disso, tendo em conta o carácter reservado de Waterson, que não aparece em público desde que a série terminou e muito raramente dá entrevistas, é pouco provável que o vejamos no próximo Festival. Esperemos ao menos que faça a ilustração para o cartaz e empreste originais para a exposição que lhe será dedicada…
Um problema que não pôs este ano, pois Willem, para além de ter feito o (pouco inspirado) cartaz, esteve presente no Festival e teve direito a uma exposição no Hôtel Saint Simon que cobria os seus mais de 50 anos de actividade como ilustrador e cartoonista na imprensa francesa.
Falando das exposições, o melhor do programa oficial estava no Vaisseau Moebius, o edifício em vidro que antigamente albergava o Museu da BD e o CNBDI, que, no ano em que se comemoravam os 100 anos da 1ª Guerra Mundial, acolheu as exposições de Jacques Tardi e Gus Bofa, dois autores separados por décadas, mas que retrataram os horrores da guerra com a mesma eficácia.
Uma das grandes referências de Tardi, Bofa viveu a Iª Guerra por dentro, tendo perdido uma perna em combate e os seus cartoons retratam a violência da guerra com um humor muito negro e um traço tão simples como eficaz. Se a bela exposição dedicada a Bofa não tinha muita gente e podia ser vista tranquilamente, já a exposição dedicada a Tardi tinha uma fila quilométrica, que saia do edifício e serpenteava pelo pátio do Vaiseau Moebius até chegar ao passeio, o que me impediu de a visitar.
No espaço Franquin, cujos auditórios acolheram os encontros com os autores, como um animado encontro com Hermann e Boucq, a que pude assistir, estavam outras duas exposições. Uma mostra de grande público dedicada aos 50 anos da Mafalda, de Quino, que seria interessante trazer a Portugal e Du Transperceneige à Snowpiercer, exposição que aproveitando o sucesso do filme do coreano Bong Joon-Ho, recupera a BD de Lob, Rochette e Legrand, que lhe deu origem, juntando as pranchas originais de Rochette para a BD, com as ilustrações que fez para o excelente filme do realizador coreano, que pude ver numa sessão especial que contou com a presença do argumentista Legrand e da viúva de Jacques Lob. Não sei se o filme estreará em Portugal, nem se passará a versão integral, ou a versão americana, censurada pelos irmãos Weisteen em mais de 20 minutos, mas se tiverem a oportunidade, não deixem de o ver.
Espalhadas pela cidade, havia uma série de exposições dedicadas às séries infantis “Les Légendaires” e “Ernest e Rebecca”, aos 80 anos do Journal de Mickey, à obra de Etienne Davodeau, à Sharaz-De de Sergio Toppi, já para não falar nas inevitáveis exposições e feiras do livro de BD cristã, presentes nas principais igrejas na cidade.
Embora praticamente ausente da divulgação oficial, face ao conflito que opõe as direcções do Festival e da Cité Internationale de la bande dessinée et de l’image, responsável pela gestão do novo Museu da Banda Desenhada, situado no cais do rio Charente, a melhor exposição deste Festival, sobre o sonho na BD, estava precisamente no Museu da Banda Desenhada. Acompanhada por um excelente catálogo, coordenado por Thierry Groensteen, a exposição Nocturnes estava ao nível das melhores exposições que já vi em Angoulême, contando com uma cenografia muito bem conseguida, que valorizava a acertada selecção de originais, que ia de Schuiten a Winsor McCay, passando por David B., Frank Pé e Marc-Antoine Mathieu, entre muitos outros. Ainda no Museu, estava também uma mostra bem mais sóbria dedicada ao livro HP de Guido Buzzelli, em que a qualidade dos originais dispensava qualquer cenografia mais elaborada.
Mas a verdade é que a maioria dos visitantes do Festival, não terá visto qualquer exposição, pois passaram os dias enfiados nas gigantescas tendas, nas intermináveis filas, à espera de conseguir um autógrafo desenhado dos seus autores favoritos. Eu tratei dessa parte logo na quinta-feira, em que havia muito menos gente e consegui um desenho a aguarela de Lele Vianello, antigo assistente de Hugo Pratt, no álbum Nuits Venetiennes, acabado de lançar pela Mosquito, que continua com um trabalho notável na divulgação dos mestres da BD italiana.
Não tenho números, mas pela maneira como já era difícil furar pelo meio da multidão que enchia as ruas da cidade na tarde de sexta-feira, ou pela imensa fila para a exposição de Tardi, na tarde de sábado, pareceu-me evidente que esta edição do Festival terá batido novos recordes de assistência, até porque as condições meteorológicas também ajudaram.
Quanto a presenças portuguesas, embora não faltassem visitantes nacionais, o destaque vai naturalmente para Paulo Monteiro, que esteve a dar autógrafos no stand da editora Six Pieds Sous Terre, que editou o livro do autor português em França, com excelente acolhimento da crítica.
Depois de quatro anos de ausência, soube-me muito bem regressar ao Festival de Angoulême, mesmo com a frustração de não ter conseguido trazer tudo o queria, especialmente a belíssima edição especial da homenagem de Frank Pé ao Little Nemo, de Winsor McKay, de que pude admirar alguns fabulosos originais na exposição Nocturnes.
Para quem gosta de Banda Desenhada, esta é uma viagem que se deve fazer pelo menos uma vez e que, se for planeada com tempo, não fica tão cara quanto parece.. Eu cá, se puder, lá estarei para o ano, pronto para admirar os originais de Bill Waterson.
Lele Vianello a dar autógrafos no Stand da Editora Mosquito
Originais de Jean-Marc Rochette para Le Transperceneige
A fila para a exposição de Tardi no Vaiseau Moebius
Pormenor da exposição de Davodeau, na Maison du Peuple et de la Paix
Exposição de Sergio Toppi no Conseil General de la Charente
Pormenor da exposição Nocturnes, no Museu da BD
Outro pormenor da mesma exposição
2 comentários:
É sempre com grande gosto que leio os seus relatos de Angouleme (e não só).
Para quem como eu tem a certeza absoluta que nunca terá a capacidade de por lá passar os seus textos tem a capacidade de nos fazer sentir lá.
Obrigado e cá ficarei a aguardar o relato do próximo ano (confesso que tenho grande curiosidade em saber como está o senhor Waterson nos dias de hoje).
Diogo Semedo
Obrigado, Diogo
Ficaria extraordinariamente surpreendido se o Bill Waterson pusesse os pés os pés em Angoulême durante o próximo Festival.Como disse no texto, já ficava satisfeito se fizesse o cartaz e cedesse originais para a exposição. Mas podemois sempre sonhar...
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