quinta-feira, 28 de março de 2013

Django Unchained: Tarantino e o Western Spaguetti


Mesmo que o filme já não esteja em exibição nas salas de cinema nacionais, é sempre tempo de falar do último filme de Quentin Tarantino, até porque o DVD não deve tardar muito e o realizador fez 50 anos esta semana. Depois dos filmes de artes marciais em Kill Bill e do filme de guerra em Sacanas sem Lei, Tarantino homenageia outro dos seus géneros favoritos, o Western spaguetti, em Django Unchained. Se as referências ao Western Spaguetti já eram habituais na sua obra (veja-se a sequência inicial de Sacanas sem Lei, ou a 2ª parte de Kill Bill, para não falar na utilização frequente da música de Ennio Moricone), desta vez Tarantino parte de um título mítico do Western Spaguetti, o Django de Sergio Corbucci, de 1966, para fazer um remake bastante pessoal, que pouco mais retém do filme original que o tema da vingança, a música do genérico, o nome do protagonista e a presença de Franco Nero, o Django original, que tem uma pequena participação no filme de Tarantino, perguntando a Jamie Fox se este sabe como se soletra o nome Django.
Embora muito menos conhecido que o outro Sérgio (Leone), Corbucci foi um excelente realizador de cinema, com uma vasta carreira como realizador que inclui, para além de Django, outro Western Spaguetti seminal, O Grande Silêncio, que serviu de inspiração directa à série de BD Durango, de Yves Swolf, e que Tarantino também homenageia nas cenas na neve do seu Django Unchained. O sucesso do filme Django foi tal que o nome do herói foi usado em centenas de outras produções, nem sequer todas Westerns, para capitalizar essa popularidade e na Alemanha,no final dos anos 60, todos os filmes interpretados por Franco Nero, o actor que faz de Django, tinham uma referência a Django no título. O próprio Tarantino participa como actor num delirante Django japonês (Sukiyaki Western Django) realizado pelo infatigável Takashi Miike em 2007.

Ao contrário dos Western Spaguetti tradicionais, filmados na sua maioria em Almeria, no sul de Espanha, o filme de Tarantino tem a Louisiana como cenário principal de uma história que tem a escravatura como tema dominante, pois o Django de Tarantino é um escravo negro libertado por um caçador de prémios, magnificamente interpretado por Cristoph Waltz, num papel que lhe valeu mais um Óscar de Melhor Actor Secundário, depois do Óscar em Sacanas sem Lei. Mas Waltz não é único actor a brilhar a grande altura, pois também Samuel L. Jackson está fantástico no papel do "negro mais odioso da história do cinema" e Leonardo Di Caprio é perfeito como Calvin Candie, o dono da fazenda que comprou Broomhilda, a mulher de Django.
Abordando um tema controverso nos Estados Unidos como a escravatura, o que lhe valeu críticas de Spike Lee, Tarantino constrói um filme muito violento, mas com momentos muito divertidos, como a discussão dos elementos do Ku Klux Klan por causa dos capuzes, e diálogos magníficos, como sempre. Apesar das quase três horas de duração, o filme vê-se muito bem sem se dar pelo tempo passar, embora seja visível que há cenas que sofreram cortes e a montagem não é tão fluida como habitual em Tarantino, apesar da narrativa ser das mais lineares, algo a que não será alheia o facto de este ser o primeiro filme que não foi montado por Sally Menke, a editora habitual do realizador, que faleceu em 2010.

Mas desta vez o público vai poder descobrir o argumento de Tarantino na íntegra, incluindo alguns diálogos cortados, que estão no CD da banda sonora original, graças à mini-série da Vertigo desenhada por R.M. Guera que adapta o premiado guião de Tarantino à BD, de que já sairam nos EUA os 2 primeiros números, dos 5 previstos. Uma ideia do produtor Reginald Hudlin, responsável pela adaptação do argumento, que permitiu a Tarantino estrear-se na BD, ao lado do sérvio R. M. Guera, o desenhador de Scalped, um western contemporâneo escrito por Jason Aaron, de que Tarantino, que descobriu a série da Vertigo por sugestão de Samuel L. Jackson, é fã incondicional. . Curiosamente, embora esta seja a primeira vez que um argumento de Tarantino é adaptado ao cinema, Guéra já tinha ilustrado um argumento de Tarantino numa história curta baseada numa cena do filme Sacanas sem Lei, publicada na revista Playboy.
 Para terminar deixo-vos com três traillers. O do filme de Tarantino, o do Django original de Corbucci e o do filme de Takashi Miike.







domingo, 24 de março de 2013

Comprimidos Azuis: Amor nos tempos do SIDA


Depois da verdadeira pedrada no charco que foi a edição portuguesa de “Blankets”,de Craig Thompson, a Devir enriquece a coleção “Biblioteca de Alice”, com mais uma excelente novela gráfica, “Comprimidos Azuis”, de Frederick Peeters.
Nascido em Geneve em 1974, Peeters é um desenhador e ilustrador suíço, com uma obra relativamente vasta publicada no mercado franco-belga, tanto a solo como em colaboração com diferentes argumentistas, mas este “Comprimidos Azuis”, publicado em 2001, foi o livro que lhe valeu maior prestígio, traduzido no Prémio Topffer, atribuído pela cidade de Geneve, em 2001 e na nomeação para o Alph’Art de Melhor álbum no Festival de Angoulême em 2002, prémio que acabaria por perder para “Isac, O Pirata”, de Cristophe Blain.
História autobiográfica, centrada na vida de Peeters com a sua companheira e o filho dela, que são seropositivos (os comprimidos azuis do título, são os retrovirais que eles têm que tomar para impedir que a doença ataque o seu sistema imunitário), “Comprimidos Azuis” é o relato do quotidiano de uma família, que tenta viver uma vida normal, apesar da ameaça da doença. Um relato simples e extremamente humano, com momentos de humor e outros de angústia, tratados com um traço propositadamente simples e quase esboçado, que busca uma espontaneidade total, longe do aprumo gráfico de outro trabalhos de Peeters, como “Pachiderme”, ou “Chateau de Sable”.
Como refere o próprio Peeters, numa entrevista a Thiery Bellefroid: “o livro foi feito com a maior inconsciência. A ideia não era fazer um livro, mas sim um diário de uma relação. Impus-me como limitação não redesenhar ou reescrever nenhuma página. As soluções técnicas também foram voluntariamente simples para ir directo ao essencial: papel de fotocópia A4, caneta preta para o texto e caneta-pincel para o desenho. A ideia do livro só surgiu ao fim de 35 páginas, quando dei a ler o começo a Daniel Pellegrino, o editor da Atrabile, para saber a opinião dele.”
Mais de uma dezena de anos depois, mais de cinquenta mil livros vendidos, entre uma dezena de edições e outras tantas traduções, o livro chega finalmente às livrarias portuguesas, onde já se encontram outros títulos representativos da autobiografia em BD, como o já citado “Blankets”, mas também “Persepolis”, de Marjane Satrapi, ou “Fun Home”, de Alison Bechdel. Sem a carga literária (nem o pretensiosismo) de “Fun Home”, nem a relevância histórica de “Persepolis”, “Pílulas Azuis” é bastante superior em termos gráficos a estes dois títulos, pois, mesmo optando por um registo mais esboçado, Peeters é muito melhor desenhador, do que Satrapi ou Bechdel alguma vez serão, e as soluções visuais que encontra, como o rinoceronte que o segue, ou o mar que embala o sofá, enquanto conversam, são muito bem conseguidas.
Quanto à edição da Devir, bem impressa e de capa dura, tem o senão de (tal como já acontecia com o “Blankets”) ter uma sobrecapa bastante menos conseguida do que a capa original que esconde.
(“Comprimidos Azuis”, de Frederik Peeters, Devir/Biblioteca de Alice, 198 pags, 24,99 €) 
Versão Integral do texto publicado no Diário As Beiras de 23/03/2013

sábado, 9 de março de 2013

Chaillet entre a História e o Fantástico


Depois de se ter estreado no mercado português em finais de 2012, com dois títulos já analisados neste espaço, a editora espanhola NetCom2 volta a apostar no mercado nacional com mais dois lançados em Fevereiro. São eles “As Deusas da Estrada”, segundo volume da série “Margot”, de Olivier Marin e Emílio Van Der Zuiden, que explora com eficácia uma receita de sucesso (carros “vintage” e mulheres esculturais) que também parece estar a funcionar em Portugal, e “Viagem aos Infernos”, primeiro volume da série “A Última Profecia”, que assinala o regresso de Giles Chailllet às livrarias nacionais.
Título que inaugurou a coleção “Loge Noire”, dirigida por Didier Convard para a Glenat, que explorava a temática esotérica, e onde saiu, por exemplo a série “Le Triangle Secret” e as suas derivações, em que Chaillet também colaborou, esta “Última Profecia” é dos melhores trabalhos do autor formado na escola da revista Tintin, que foi colaborador próximo de Jacques Martin (figura óbvia de referência do catálogo da NEtCom2) nas séries “Lefranc” e “Les Voyages d’Alix”.
Falecido em 2011, com 65 anos, Chaillet iniciou-se na BD nos Estúdios Dargaud, em 1965, trabalhando como colorista nas séries “Blueberry, Achille Talon e Tanguy e Laverdure, tendo trabalhado mais tarde como assistente de Uderzo na série “Astérix”, desenhando anonimamente diversas ilustrações publicitárias e várias histórias curtas com Ideafix, o cão de Astérix. Em Portugal, mais do que pela sua colaboração com Martin na série “Lefranc”, Chaillet é conhecido pelas aventuras de Vasco, um jovem banqueiro na Itália do século XIV, criado em 1976 para a revista “Tintin”, de que a Edinter editou os quatro primeiros volumes em português nos finais dos anos 80. Se esses trabalhos reflectiam a vertente mais clássica da obra de Chaillet, a Última Profecia” mostra uma dimensão mais sombria, numa história claramente mais adulta, em que as teorias da conspiração e os elementos fantásticos convivem com um rigor arquitectónico impressionante.
Grande apaixonado pela cidade de Roma, que já tinha sido o palco do primeiro álbum de Vasco e dos volumes das “Viagens de Ali”x que ilustrou, Gilles Chaillet retrata agora a cidade eterna nos finais do século III, numa fase em que a decadência do Império Romano do Ocidente é bem evidente e a religião cristã dominante procura acabar de vez com os rituais pagãos. Para além de uma intriga bem oleada, que desperta no leitor a curiosidade quanto ao desenrolar da história, este primeiro volume impressiona pelos pormenores da arquitectura e pelo recurso às imagens de dupla página, para algumas cenas de combate, ou para uma impressionante reconstrução do Fórum nas páginas 14 e 15.
 
Uma série a seguir com atenção e que se revela uma muito boa aposta da NetCom2. Editora que promete mais duas novidades para Abril (o 3º álbum de “Margot” e o 2º volume de “Keos”), mostrando um ritmo de publicação sustentado a que os leitores portugueses já não estavam habituados…
(“A Última Profecia Tomo I: Viagem aos Infernos”, de Giles Chaillet, NetCom2 editorial, 48 pags, 15,00 €)
Versão integral do texto publicado no Diário As Beiras de 9/03/2013

quinta-feira, 7 de março de 2013

Evocando Comés (1942-2013)


Como os visitante mais regulares deste espaço terão reparado, nos últimos tempos têm sido poucas as actualizações neste blog. Mas, apesar da falta de tempo para um texto mais desenvolvido, não quis deixar de evocar a memória de Didier Comés, desaparecido hoje, aos 71 anos, vencido pela doença que já há alguns anos o impedia de desenhar. CAdmirador confesso de Hugo Pratt, Comés foi mestre do preto e branco e um dos grandes nomes da revista (A Suivre) onde saíram os seus títulos mais importantes, incluindo o magnífico "Silêncio", que foi uma das leituras mais marcantes da minha adolescência, graças a uma edição da Bertrand. Mais tarde, a Asa reeditou "Silêncio", a cores e em dois volumes. É o texto que escrevi sobre essa edição, há mais de 10 anos, que hoje aqui recupero, prestando assim a minha modesta homenagem a Comés (que na foto acima, tirada no último Festival de Angoulême, aparece ao lado de outro mestre do preto e branco, o argentino José Muñoz, naquela que foi a sua última aparição pública) e ao seu livro mais marcante.

UM IRREPETÍVEL SILÊNCIO

Se há obras que marcaram toda um geração de leitores, “Silêncio” é indiscutivelmente uma delas. Publicada inicialmente em 1979 na revista (A Suivre), este “Roman BD” de Didier Comés, seria publicado em álbum em Portugal, alguns anos depois, através da Bertrand que, num mercado onde os álbuns de 48 páginas a cores ditavam a lei e o virtuosismo do preto e branco de Hugo Pratt ainda não convencia totalmente os leitores da revista “Tintin”, arriscou publicar uma história a preto e branco com mais de uma centena de páginas, assinada por um autor praticamente desconhecido.

Mas este “Silêncio” merecia o risco, graças a uma história sensível e de uma terna melancolia, sobre um jovem mudo e deficiente mental cuja inocência choca com a intriga e a perversidade da aldeia perdida da França profunda em que vive. Através de uma descrição desencantada da França rural, em que a ignorância e obscurantismo se misturam com a magia e a superstição, Comés criou uma intriga inesquecível, em que os traumas da perda da inocência se misturam com os prazeres da descoberta do amor, servida por um grafismo de poderoso contraste em que as sombras da obra do seu mestre Hugo Pratt eram bem evidentes, até no melancólico final em que os dois amantes mortos entram pelo mar adentro, rodeados por gaivotas que podiam ter saído de uma página do autor de Corto Maltese.

Depois de “Silêncio”, a obra de Comés continuou a ser divulgada em Portugal de forma regular, pela Meribérica, através de uma série de livros, como “A Árvore-Coração” e “A Casa onde as Árvores Sonham”, em que o autor belga, fiel às suas obsessões (os ambientes rurais, as religiões primitivas, a magia telúrica, ligada ao culto da natureza e aos rituais de fertilidade) procurou em vão repetir a magia de “Silêncio” sem nunca o lograr totalmente. “As Lágrimas do Tigre”, o mais recente título de Comès, que a Asa acaba de lançar em português neste início de 2003, é um bom exemplo. Apesar da notável técnica de preto e branco de Comès, da elegância de um traço cada vez mais seguro e apurado e do rigor da planificação, falta a esta adaptação de uma lenda índia, aquela magia única e irrepetível que encontramos em “Silêncio”. Uma magia que toda uma nova geração de leitores poderá descobrir através da reedição colorida em dois volumes, com que a Asa assinala a entrada no seu catálogo cada vez mais forte.

Esta moda de reeditar alguns clássicos da BD a preto e branco, em novas versões coloridas e divididas em vários volumes, parece ter pegado nas Edições Casterman, que assim rentabilizam um valioso fundo de catálogo que inclui algumas obras-primas da BD franco-belga dos anos 80, como este “Silêncio”, ou “O Grande Poder de Chninkell”, de Rosinski e Van Hamme, que a Meribérica está também a publicar numa nova versão colorida. Uma opção comercial válida, mas que não deixa de ter os seus detractores, para quem estas reedições coloridas não passam de uma forma descarada de vender duas vezes o mesmo produto.


E a verdade é que, mesmo que as novas cores, bastante suaves, não choquem muito, ao ver um clássico destes adulterado, para quem conhece a versão original, fica sempre um sentimento purista de frustração, semelhante ao que terá um cinéfilo perante a versão colorida de um filme como “Casablanca”.
 No fundo, é o mesmo problema colocado pelas reedições a cores dos trabalhos de Hugo Pratt que, não convencendo completamente os adeptos do excelente jogo de sombras de Pratt, tem no entanto o grande mérito de atrair novos leitores, para quem a cor é um elemento imprescindível da BD.
 Mas, a cores ou a preto e branco, o importante é que o livro está novamente disponível em Portugal, de modo a que mais leitores possam descobrir finalmente o encanto (até agora irrepetível) de “Silêncio”.


Texto originalmente publicado no Diário As Beiras de 22/02/2003