domingo, 10 de maio de 2015

Colecção Novela Gráfica 11 - Mort Cinder, de Oesterheld e Breccia


Nesta colecção Novela Gráfica, este foi um dos livros em que me deu mais prazer colaborar, não só porque conseguimos fazer uma edição que, não sendo perfeita, é possivelmente a melhor disponível a nível mundial, mas principalmente porque que se trata de um livro magnífico, de dois fantásticos criadores. 
Deixo-vos aqui com o editorial que escrevi para este volume, que recupera um texto que fiz em 2009, a convite da Cristina Gouveia,  para o catálogo da exposição Oesterheld: O Homem como Unidade de Medida, organizada pelo CNBDI, numa versão largamente revista, aumentada e actualizada. 
O volume traz também um pósfacio meu sobre o destino trágico de Oesterheld e das suas filhas, que optei por deixar para publicar aqui  mais tarde, possivelmente para o dia 4 de Setembro, dia que, desde 2005, é o "dia de la Historieta", na Argentina, precisamente por ter sido nesse dia, em 1957, que começou a ser publicado na revista HORA CERO, outro grande clássico de Oesterheld, a série El Eternauta.

AS MIL E UMA MORTES DE MORT CINDER

Do inesgotável filão de criadores que fazem da Banda Desenhada argentina uma das mais importantes a nível mundial, dois nomes sobressaem acima de todos. O de Hector German Oesterheld e o de Alberto Breccia.
Considerado muito justamente como o maior argumentista de Banda Desenhada de língua espanhola, H. G. Oesterheld, ao longo da sua carreira de quase três décadas (uma carreira extremamente produtiva, mas que foi tragicamente encurtada pela repressão da ditadura militar argentina) escreveu mais de cento e sessenta histórias para cinquenta desenhadores diferentes. Conciliando a quantidade com a qualidade na sua escrita, Oesterheld soube sempre encontrar desenhadores à altura do seu talento, conseguindo criar as parcerias adequadas a cada projecto. 
De Solano Lopez em El Eternauta, passando por Hugo Pratt em Sgt. Kirk e Ernie Pike, Arturo Del Castillo em Randall, até uma colaboração com Dino Battaglia em Capitan Caribe, foram inúmeros os desenhadores com quem Oesterheld colaborou, mas a sua parceria mais importante foi a que estabeleceu com Alberto Breccia, o desenhador nascido no Uruguai, mas que fez da Argentina a sua pátria. 
A primeira colaboração entre Alberto Breccia e Oesterheld deu-se em 1958, com Sherlock Time, um policial com toques de ficção científica e de fantástico, protagonizado por um detective que podia viajar no tempo (o nome, Sherlock Time, não engana), em que Breccia conseguiu criar um ambiente estranho e fantástico, sem no entanto abdicar de uma representação minuciosa e realista da cidade de Buenos Aires, onde se desenrola a intriga. Ou seja, características que encontramos também em El Eternauta, em que os leitores argentinos descobriram um espaço quotidiano que bem conheciam, a cidade de Buenos Aires, retratada com rigor fotográfico por Solano Lopéz, perturbado por fenómenos extraordinários (no caso de El Eternauta, uma invasão extraterrestre).

José Muñoz, discípulo de Breccia e seu aluno na Escola Panamericana de Artes, onde Hugo Pratt também leccionou, define assim o traço do mestre em Sherlock Time, : “em cada toque de pincel, frio, preciso e rigoroso, encontramos o tempo fechado definitivo de cada desenho. Esse pincel frio, queima”.
Em 1962, ano em que um golpe militar pretende pôr fim à actividade da guerrilha argentina, iniciada três anos antes, começa a ser publicada na revista MISTERIX aquela que é considerada a obra-prima da dupla Breccia/Oesterheld: a série Mort Cinder. Mort Cinder, como o definiu o próprio Oesterheld: “é a morte que nunca deixa de o ser (...) um herói que morre e ressuscita, e no qual há angústia e tortura". Esta capacidade de morrer e viver de novo, permite à personagem atravessar diferentes épocas e locais da história, dos quais guarda uma memória latente. O filósofo argentino Óscar Masotta, compara Mort Cinder a o Fantasma, personagem criado por Lee Falk, salientado o que os separa: “na verdade, Mort Cinder, o “homem das mil e uma mortes”, é uma interessante inversão do esquema que rege a personagem de Lee Falk, o ‘‘fantasma que caminha”, o único herói de BD que morre... (no Fantasma, o personagem não morre, só morrem os homens que vestem o fato de Fantasma, que passa de gerações em, gerações; em Mort Cinder o homem é imortal, só morrem as suas múltiplas incarnações históricas).” O Escritor argentino Juan Sasturain é mais pragmático, referindo: “Mort Cinder é mais um mecanismo do que uma personagem – sendo todos, não é ninguém - que serve de pretexto para tecer histórias sombrias de amor e morte”. E a morte, que Oesterheld considerava a maior das personagens, está bem presente no nome de Mort Cinder, mais um nome que não engana, e que evoca a morte e as cinzas.
Na prática, Mort Cinder é a sequência lógica e natural de outras personagens criadas anteriormente por Oesterheld, pois tal como Sherlock Time, ou o Juan Salvo de El Eternauta, Mort Cinder é mais um herói criado por Oesterheld que está liberto das leis do espaço e do tempo.
 Se no caso de Juan Salvo e Sherlock Time essas viagens são feitas com recursos a máquinas sofisticadas, Mort Cinder viaja através da sua memória e das recordações que ela encerra. Recordações que são normalmente espoletadas por um qualquer objecto, cuja história está ligada a uma anterior vivência de Cinder. De modo a facilitar o reviver dessas experiências, Oesterheld criou como co-protagonista e narrador da série, a personagem de Ezra Winston, um antiquário amigo de Mort, que tem as feições do próprio Alberto Breccia, numa perturbante antevisão do que seria o rosto envelhecido do desenhador, algo que Breccia já tinha tentado antes com Eustáquio Mendez, personagem que aparece en El Ídolo, o segundo episódio de Sherlock Time, e cujas parecenças com Ezra Winston e com o próprio Breccia, são tão evidentes como inegáveis.
Já o rosto de Mort Cinder - que Breccia demorou a encontrar, razão que obrigou Oesterheld a retardar a entrada em cena de Cinder no episódio inicial, Os Olhos de Chumbo - é inspirado em Horácio Lalia, um futebolista argentino que mais tarde se tornaria também ele desenhador.
Demos outra vez a palavra a Oesterheld, desta vez partindo de um texto escrito em 1972, em que a personagem de Ezra Wiston se define na primeira pessoa e tenta explicar quem é Mort Cinder: “as coisas velhas ficam impregnadas da vida que as envolveu. Mas muito poucos conseguem captar as angústias, as emoções que ficaram aprisionadas, fósseis invisíveis, dentro das coisas velhas. Sou uma dessas raras pessoas, daí me ter tornado antiquário. Também sinto fascinação pelos templos, não importa a religião. Tantas preces, tanta dor, tanta esperança, dormem nas paredes de um templo. Também me fascinam as armas, carregadas para sempre com a morte que alguma vez deram. Morte talvez criminosa, talvez libertadora.
Mort Cinder consegue captar melhor, muito melhor do que eu ou qualquer outro, toda essa vida cristalizada para sempre. Mort Cinder é talvez essa vida que ficou incrustada na matéria inerte (nunca direi morte) das coisas. E digo talvez, porque nem eu, que vivi tanto tempo com ele, sei dizer quem é Mort Cinder”.
A partir deste esquema narrativo simples, mas engenhoso e cheio de potencialidades, a série foi sendo construída, de forma não muito planeada e quase mecânica, com o tema dos primeiros episódios a ser estruturado à medida que eram escritos, o que justifica alguns desequilíbrios. Mas Oesterheld não se preocupava em esconder o jogo, pois declarou numa célebre entrevista a Carlos Trillo e Guilhermo Saccomano, publicada em Portugal na revista Tintin, que: “as faltas e indefinições de  Mort Cinder foram mais tarde elogiadas como uma descoberta acertada. Mas mentiria se afirmasse ter sido intencional. Na realidade, esse êxito, se assim se pode considerar, foi resultado das circunstâncias”.
Este carácter experimental está igualmente patente nos desenhos de Breccia, que, quando começou a desenhar a série, “não podia saber o que devia fazer, nem tão pouco comecei a ver o que os outros faziam”, optando por um estilo próprio, em que o jogo contrastante de luz e sombras e as figuras angulosas se adaptavam ao clima específico de cada história, ajudando a criar um ambiente de permanente tensão, com Breccia a variar as técnicas conforme as necessidades das histórias, como é o caso dos dois episódios passados na prisão, em que o trabalho do desenhador com tramas mecânicas é absolutamente notável e inovador.
Do mesmo modo, a iluminação que Breccia dá às suas pranchas, digna do melhor cinema expressionista, vai tornando-se cada vez mais dramática ao longo da série, fruto do próprio estado de espírito do desenhador, cuja primeira mulher estava à morte. Para esse efeito dramático contribui, e muito, a troca do “pincel frio que queima”, usado em Sherlock Time, pela lâmina que rasga a pele e as sombras, mais exactamente, lâminas de barbear utilizadas como espátulas, aspecto em que Breccia foi pioneiro e que resulta particularmente eficaz nos grandes planos dos rostos. Rostos sofridos, marcados pela vida e pelo destino, que não escondem uma profunda tristeza e sofrimento.
Igualmente inovador é o seu jogo de sombras em negativo e o preto e branco de alto contraste, aspecto que influenciou vários desenhadores, sendo Frank Miller, em Sin City, o exemplo mais evidente.
O próprio Oesterheld é o primeiro a reconhecer a importância do desenho de Breccia para o sucesso de Mort Cinder, ao dizer: “Há sofrimento, tormento em Mort Cinder. Isso reflecte talvez o meu estado de alma particular, mas o essencial dessa atmosfera vem de Breccia. Há uma quarta dimensão no seu desenho, uma capacidade de sugestão que o distingue da maioria dos desenhadores que conheço. É essa força constantemente aplicada, que dá ao seu desenho todo o seu valor e inflama a imaginação dos argumentistas.”
Em 1964, após terem sido publicadas mais de duzentas pranchas, correspondentes a dez episódios, em que Mort Cinder nos guiou da construção da Torre de Babel até às trincheiras da I Guerra Mundial, passando pela Batalha das Termópilas, em que 300 espartanos retardaram o avanço do poderoso exército de Xerxes, a série chega ao fim. O episódio dedicado à batalha das Termópilas é mesmo o último e nele, Mort Cinder, único sobrevivente das tropas espartanas, é deixado ir em paz pelo próprio Xerxes que, impressionado com a sua coragem lhe diz: “vai-te homem de Esparta... tu és mais Rei do que eu, és rei de ti próprio...”  Um último diálogo, que poderia funcionar como epitáfio do próprio Oesterheld, “desaparecido” em 1977, juntamente com as quatro filhas, e que, provavelmente durante o ano de 1978, terá pago com a vida o ter querido ser Rei de si próprio, numa terra onde os militares não tinham um milésimo da nobreza de espírito do Grande Rei Xerxes...
O grande investimento artístico e humano dos seus autores foi recompensado, pois não só Mort Cinder é tida como uma das séries mais importantes da BD mundial, como o próprio Breccia a considerava, muito justamente, como a melhor coisa que fizera.
Em Portugal, onde a obra de Oesterheld tem sido insuficientemente divulgada, Mort Cinder é honrosa excepção. O episódio O Vitral, foi publicado em 1979 no jornal Lobo Mau, numa época em que, na Argentina, Oesterheld, ligado à guerrilha montonera e na clandestinidade desde 1976, já tinha sido preso e já estaria morto.
O resto da série foi parcialmente editada em álbum pelas Edições Asa, já neste século, embora essa editora tenha lançado apenas Os Olhos de Chumbo, o primeiro dos dois volumes que compõem a série na edição francesa da Vertige Graphic, que serve de base à edição da Asa. Finalmente, graças à edição que têm nas mãos, está finalmente disponível numa edição integral, bastante mais fiel ao original e com superior qualidade de reprodução, esta magnífica série, ponto mais alto da frutuosa colaboração entre Alberto Breccia e Hector German Oesterheld. 

1 comentário:

André Azevedo disse...

Esta é uma das melhores edições da Colecção Novela Gráfica porque a experiência de leitura do Mort Cinder neste formato grande compensou em larga escala a existência de algumas incorrecções. Livro obrigatório em qualquer biblioteca!